Belorizonte.
Eu subia a Pernambuco na direção da Savassi. A cabeça pesava. Vinha do
dentista, duas extrações e a colocação de um pino pra implante – foi preciso
furar o osso com uma broca – com um monte de anestesia . E o efeito pouco
a pouco passava, a sensibilidade voltando com dor, a cabeça tonteando. “Evita
falar”, disse o Edson, “evita andar”. Falar, tudo bem, eu não ia expor, mesmo. Mas
era impossível não andar. “Se fosse um
funcionário de alguma empresa, eu te dava um atestado”. E ainda disse ao Pepe, “cuida
dele”. Pepe estava indo expor, incomodou a idéia de dar trabalho, atrasar o lado dele e, na
primeira esquina, desviei meu rumo.
As
anestesias parece que saíam da boca e iam pra cabeça. Eu estava zonzando,
cuspindo sangue a cada dez metros. “Preciso de gelo, de um açaí”. A rua se
inclinava mais e eu diminuí o passo. Cambaleava. Não queria parar, a coisa tava
num crescendo e parar podia se tornar um problema. Diminuí mais o passo e segui
subindo. Virei a esquina e a rua era plana, no final do quarteirão achei uma
pequena casa de sucos, entrei, sentei, pedi ao único funcionário o maior açaí
que ele tivesse. Não havia outro freguês, só eu e o rapaz. No momento em que ele me entregou a tigela
cheia, entram o dono e um representante de fornecedor ou coisa parecida, com
uma pastinha. Conversavam alto e o assunto era Dilma, petê, corrupção,
panelaço, impítiman, essas teleguiações, essas superficialidades da alienação
política classe média, mentes lavadas e enxaguadas pela mídia. Meti a colher
cheia na boca, coloquei em cima da dor, fechei os olhos - fica quieto, pensei, não fala nada.
Enfiava colheradas repetidas na boca, os caras não paravam de falar merda. Doidão das anestesias, cheio de dor, enchendo a boca de açaí e ouvindo disparate em
cima de disparate, repetidos lugares comuns da televisão e dos jornais
comerciais. É automática a ligação entre todo o sofrimento, abandono, miséria, ignorância,
entre esses crimes sociais e aquela estupidez burra, imbecil, alienada,
raivosa, obsessiva e totalmente teleguiada.
Eu não tava
no meu normal. De repente levantei o braço entre os dois, “cês ficaí falando de
Dilma, de Aécio, de petê, de corrupção, do caralho, até parece que essas
figuras mandam alguma coisa. Quem manda nessa porra é banqueiro, é mega empresário,
não tem governo, tem gerência, quem manda mesmo não passa por eleição nem
aparece na televisão!” Os caras me olharam espantados, o dono da loja ainda
tentou reagir, “mas a corrupção da Petrobrás...” e eu não deixei ele continuar,
“a corrupção começou agora, né, petê que inventou, antes não existia...” os
olhos bem nos olhos dele, que desviou o olhar dizendo “é... o ser humano é
corrupto...” Mas a dor me fazia implacável, tanto a da boca quanto a da
realidade que aquela mentalidade era fabricada pra não ver. “Se tu só conhece
corrupto, azar seu, conheço um montão de gente honesta, que não tá nessa
política aí, que nem é política de verdade, porque os donos não querem, não
interessa a eles, se um entrar fica isolado lá dentro, não passa um projeto que
seja! Tu tá é vendo muita televisão, fica falando aí na superfície, pensa que
esses cara manda alguma coisa, isso é televisão que faz, papo de otário. Que mané
Dilma é o caralho! Eu não voto desde 89, que não tô aí presse deboche, vai todo
mundo de carneirinho votar pensando que pode mudar alguma coisa. Depois vai
falar merda, teleguiado, longe da realidade como quer a televisão. Boiada!
Cambada de mané! Enquanto tem criança, velho, gente abandonada por conta da
ambição desses filadaputa que faz a gente de otário!” Eu olhava com raiva,
falava alto e gesticulando, apontando o dedo na cara do sujeito. Uma parte de
mim tentava me conter, mas o controle tava entorpecido. Os caras silenciaram, eu pude me concentrar na tigela e meter a cara no açaí, puto da minha vida.
Então eu tô aqui com dor, zonzo, cuspindo sangue, vêm esses babacas encher
minha orelha de merda, ora vai sifuder. Até eu sair não se falou mais nada na loja de sucos.