quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Passagem rápida pelo território Krenak, saímos pesados de tristeza.

Watu, o rio Doce, sem vida, "não pode nem botar o pé", como diz o cacique.

A ponte da área onde mora o cacique Rondon e sua família.

As únicas vidas são as que vivem da carniça. Se vão morrer pelos metais pesados, não sei. Acredito que sim, espero que não.

Estivemos ontem na área indígena dos Krenak, perto de Resplendor, na beira do rio Doce. Ninguém, em toda a região do vale, tem tanta consciência da importância, do tamanho desse colapso. O rio, que eles chamam de Watu, espírito de união do povo, está morto. Os olhos do cacique mostram o espanto diante do vazio, perderam a condição de ver o futuro, de ter esperança, não há mais nada no futuro. Não há peixe, não há bichos, não há mais a água sagrada que, mesmo suja, poluída pela civilização com esgotos e rejeitos vários, ainda curava, dava o alimento, unia o povo krenak. Os rituais religiosos eram no templo do Watu. “No fim do ano a gente faz o ritual de limpeza do espírito, de união, nas águas do Watu. Toda segunda, quarta e sexta nós reunimos no ritual do rio. O que que a gente vai fazer agora?” Quando pergunto “... como é que vai ser daqui pra frente?”, Rondon desvia o olhar, “nem quero pensar nisso...”, mostra a pauta das necessidades imediatas num documento que fizeram através da Funai, “tudo vai depender disso aqui”, e chora. O histórico das mentiras civilizadas, através dos séculos, invariável, é arrasador. Minha alma chora com ele.

Ninguém se deu ao trabalho de avisar os Krenak. Eles não souberam da barragem de rejeitos químicos rompida, a não ser quando chegou a lama venenosa, de madrugada, trazendo os peixes mortos em primeiro lugar, com mais um montão de destroços, troncos, animais mortos e o mau cheiro que caracterizou todos os lugares onde passou a lama tóxica da morte. Rondon foi o primeiro que viu. Ninguém lembrou deles, ninguém pensou neles, só se olha pra eles quando, por exemplo, interromperam a passagem dos trens que transportam minérios de Minas pro litoral. Aí são bugres, ignorantes, subversivos, baderneiros, obstáculos ao progresso – tecnológico, claro, pois não se pensa nem se fala no progresso moral, tão ausente em nossa sociedade, essa da forma sem conteúdo, do corpo sem alma. Eles conseguiram, com sua “subversão”, um pouco de água pra beber, ração pro gado, algumas caixas dágua que eles não têm como encher sem os caminhões-pipa da prefeitura que, eles sabem, deixarão de levar água assim que puderem, que o assunto esfriar, que os olhares forem pra outros lados. E eles não têm outras fontes. Como é que vai ser daqui pra frente?

Rondon tinha acordado cedo, inquieto com a premonição da sua mãe, e saído de casa pra beira do rio, ouvindo um barulho estranho. Chegando nas pedras, viu milhares de peixes mortos chegando, aquela lama espessa cobrindo a água. Sua mãe, Laurita, anciã respeitada por todos, previu a morte do rio, “Watu veio chorando no vento, eu ouvi o choro e disse, a morte vem pelo rio”. Era noite, duas antes da morte do rio. Ninguém pôde imaginar o tamanho da devastação, apesar de já esperarem mais um acontecimento ruim.

Enquanto o povo originário não recebe informações dignas, o vale inteiro do rio Doce está à mercê das mentiras institucionais, tanto da empresa quanto do estado.

A lama carregada de metais pesados, altamente tóxicos, que se acumulam no organismo pra explodir em problemas neurológicos, cânceres e várias outras doenças, é declarada “inerte”, inofensiva, até mesmo sugerida como adubo, num escândalo de cara de pau, de cinismo e hipocrisia. O cenário é tratado por eles (funcionários da mineradora e representantes do poder "público") como um cenário mesmo. A realidade não importa, desde que se possa mascará-la o suficiente pra continuar o processo de destruição, pra se manterem nos poderes os mesmos que estão, os parasitas, os inimigos da humanidade, criadores e mantenedores dessa estrutura social criminosa. Não importam as doenças que aparecerão daqui a oito, dez anos. Não importam as conseqüências que caírem sobre a população. Os laboratórios farmacêuticos, a indústria da medicina lucrativa saberá dar uso a todo esse sofrimento, oferecendo seus serviços em troca dos bilhões que resultarão. É um escárnio diante da humanidade.

Os trens passam do outro lado do rio, o dia inteiro, vários por hora. E apitam diante dos krenak. Vai entender...

A ponte destruída desde a enchente de 2013 não recebeu reparo. Nem município, nem estado, nem união assumem.

A cara mais sinistra dessa ponte é a da chegada.

Abandono pelo poder público, uma realidade permanente. E ainda é pior quando empresas estimulam o ódio, por interesses.

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O massacre dos povos originários é feito desde a chegada dos colonizadores europeus. Oficialmente portugueses, mas vários países da europa estavam representados aqui, entre os invasores. Relações amistosas só eram mantidas por interesse dos exploradores. Nesse território não havia acumulação de bens e as riquezas estavam à disposição de todos, igualmente – as verdadeiras riquezas. O povo krenak, originalmente botocudos – a mudança de nome serve à estratégia de esquecimento que envolve os crimes estruturais da sociedade – passou por inúmeros massacres, desde a “guerra justa” decretada por d. João VI, quando veio pro Brasil fugindo do exército de Napoleão Bonaparte e aqui ficou por uns quantos anos. Houve dispersão e reencontro, várias vezes, do recôncavo baiano se reagruparam no vale do Mucuripe, eram perseguidos, dispersados, muitos morriam, os que escapavam se reencontravam e seguiam, até que o vale do Watu os acolheu. Aí chegaram os interesses mineradores, grandes empresas que compravam governos e impunham ferrovias, ah, mas tem uns índios lá, fodam-se os índios, bota pra correr, isso é igual bicho, tem que enxotar. Expulsos, assassinados, dispersos, se reuniram de novo e seguiram vivendo. Muito tempo depois, apareceu a Funai e os remanescentes receberam as terras que lhes pertenciam. De um lado só do rio Doce, do outro passa a ferrovia da mineração, toda hora passa um trem, vários por hora. Em frente às casas dos krenak, apitam, do outro lado do rio. Um cumprimento dos maquinistas, em solidariedade intuitiva com aquele povo injustiçado que conseguiu uma migalha do que lhe foi roubado? Ou um deboche dos exploradores, requinte de ironia marcando o sentimento de desprezo diante das casas das suas vítimas?


Um grupo pequeno de mãe e um casal de filhos, Laurita, Ni e Rondon, encontra um agente do estado que lhes afirma, incauto, que era impossível eles serem krenak porque os krenak estavam extintos. A senhora desferiu um arsenal de insultos em seu idioma, diante de um funcionário atônito e sem saber o que fazer. A filha, Ni, interveio nesse momento, “o senhor sabe o que ela falou? Ele, espantado, “não...” “como o senhor está dizendo que nós estamos extintos, se até nosso idioma está vivo?” Foi o início da luta que lhes devolveu ao menos um pedaço do que lhes foi tomado. Um pedaço mínimo.

9 comentários:

  1. pode estar nessa lista de necessidades imediatas a perfuração de poços artesianos pra essa área indígena, pelo menos como maneira emergencial de fornecimento de água pra essa gente.
    caso entremos num escritório de uma dessas mega empresas sem avisar, com baldes de lama a serem espalhados por todos os lados, o que nos acontece?
    hora de fazer uma faxina...

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    1. teu raciocínio é ótimo, me ajuda?
      quase 120 anos regando venenos letais nos solos mais sagrados do Sul sobre o Aquífero Guarani nas plantações de fumo... o povo inda bebe água das ponteiras pra sobreviver.
      60 dias de lama escoando pelo Rio vai causar dano maior nos lençóis freáticos?
      ou fazem poços artesianos pra essa gente ou vão querer empurrá-los dali pra qualquer quadradinho de terra "inútil", como fazem historicamente, sob o pretexto da "falta de água".

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    2. Já houve exames, Juliana. Em poços novos e velhos, em tentativas e escavaões. Se em algum lugar tá dando certo, tomara, eu não fiquei sabendo.

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    3. obrigada Edu, passei pra frente o relato pra ser divulgado. Vocês estão fazendo um trabalho da verdade, de valor. Tô admirando, e aprendendo.

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  2. Estou divulgando este texto, emocionante. São as vidas consideradas desnecessárias pois não fazem parte do "grupo consumidor" ... que tristeza, quando aqueles que se consideram os "donos do mundo e da vida" irão se dar conta de que estamos todos no mesmo barco??? que só levamos conosco nossos afetos, sentimentos... mas a vida vai brotar de novo... como na música: "apesar de você amanhã será outro dia"...sempre, outro dia.

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  3. Nossa isso ninguém mostra né !!Muito emocionante mesmo toda essa situação!!! Viu divulgar!!!

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  4. Nossa isso ninguém mostra né !!Muito emocionante mesmo toda essa situação!!! Viu divulgar!!!

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