A mineradora que infestou de lama tóxica, rejeitos da mineração
carregados de metais pesados, toda a maior bacia hidrográfica do sudeste
brasileiro, afirma que a lama é inerte e inofensiva, diante de toda destruição
de vida que ainda continua matando mar adentro. Os governos fecham escolas
públicas, superlotando as unidades restantes e arrasando qualquer possibilidade
de ensino que mereça esse nome pra população. Ao mesmo tempo, constroem presídios
que, na certeza da superlotação pela ausência de formação profissional, pela
criação de mais e mais miséria e exploração da pobreza que aumentam e continuam
aumentando a criminalidade, já estão sendo privatizados pra que as prisões em
massa, planejadas, gerem lucros empresariais. Não se fala na previsível
explosão da criminalidade na região destruída, onde centenas de milhares de
família simplesmente perderam suas fontes de sobrevivência e não têm como se
manter. É possível crer que ficarão todos conformados com a miséria, com a fome
e o abandono? O que me parece é que o evento se encaixa no planejamento
carcerário “nacional”. Também não se fala no câncer anunciado pelo contato direto com os metais pesados dos rejeitos da mineração. O Estado e a empresa, com seus laboratórios de análises químicas, dizem que a lama é inerte e inofensiva à saúde, ao contrário de todos os exames independentes que foram feitos indicarem alarmantíssimos índices de contaminação de um monte de metais pesados, que entram pela pele, se alojam em várias partes do corpo e, em alguns anos, aparecem como tumores cancerosos, problemas neurológicos e tantos mais. Os laboratórios farmacêuticos e a indústria da medicina lucrativa esfregam as mãos, sorrindo.
As delegacias de crime contra o patrimônio demonstram que a vida vale
bem menos que o patrimônio, se comparadas às delegacias de crimes contra a vida.
As ciências exatas são as mais consideradas, as que recebem mais investimentos,
em detrimento das ciências sociais, relegadas a um segundo plano de importância
na sociedade humana, reduzidas ao plano assistencialista nos âmbitos oficiais. Os sinais estão aí, escritos à nossa volta.
Recebi um comentário falando da situação atual, “decepcionante”. É comum
essa reação entre os que se deixavam enganar e vão tomando consciência da
realidade ao mesmo tempo em que percebem as mentiras de que foram e são vítimas
desde que começaram a pensar. Um pensamento acomodante e amedrontado que senta e lastima. Respondi.
“A situação atual é esclarecedora sobre todas as situações que existiram
na história do nosso povo. É preciso enxergar a realidade antes de pensar em
mudá-la. Na verdade nascemos em um mundo em constante mutação e a vida é nossa
participação no processo. Consciente ou inconscientemente participamos todos da
permanente mutação, que vem de sempre e irá adiante depois da saída de cada um
de nós. Ninguém vai mudar o mundo, pois este muda independente de qualquer um.
O que se pode é escolher como participar do processo e é aí que está a
dificuldade. Escolhemos o que queremos ou o que somos levados, induzidos a
querer? Sentimos por conta própria? Enxergamos com nossos próprios olhos ou com
as lentes impostas por uma educação falsa ou enquadradora, por um massacre
midiático-publicitário que usa conhecimentos profundos sobre o psiquismo humano?”
Depois, continuei refletindo.
O aparato induzidor da realidade social em que vivemos está enraizado em
toda a estrutura social, a partir do inconsciente coletivo, o inconsciente
individual de cada um de nós em média, na formação do modo de vida que vemos
normalizado, no tipo de relações entre as pessoas, entre nós e o meio em que
vivemos. Valores sociais e pessoais, objetivos de vida, desejos cotidianos,
comportamentos são criados em laboratórios de pensamento e impostos
sedutoramente, impositivamente pela mídia, essencialmente concentrada em mãos empresariais - e comandada por cabeças empresariais, é preciso lembrar. A
televisão fala com as pessoas na sua intimidade, especializada em tocar e
conduzir sentimentos, visão de mundo, em alienar as mentalidades, em.condicionar comportamentos, em criar valores falsos, em acomodar e paralisar as consciências.
Os políticos são comprados a peso de ouro de acordo com sua importância
e influência, em financiamentos de campanha, apoio midiático e facilidades
milionárias, leis são feitas de acordo com interesses empresariais, direitos
trabalhistas são violados, direitos humanos, básicos, constitucionais são
ignorados por um Estado dominado, seqüestrado pelo poder econômico de bancos e
mega-empresas. As ações dos poderes públicos são claramente contra a população
toda vez que interesses econômicos determinam. Comunidades são expulsas de seus
locais de origem, desabrigados perambulam pelas ruas, a miséria e a pobreza
criando violência e criminalidade, o desatendimento dos direitos aceito como
inevitável, “no caminho do desenvolvimento econômico e tecnológico” e ninguém
fala em desenvolvimento moral, humano, social. Aliás, não sei se vão concordar
comigo, a palavra “social” muitas vezes é dita entre a ironia, o deboche e o
desprezo – sentimentos induzidos. A mesma distorção foi feita com a expressão “direitos
humanos”, sinonimizado com “defender bandidos”.
As universidades sofreram um grande expurgo, verdadeira caça, durante a cara militar da ditadura, com
o exílio, a prisão, a perseguição, a tortura e a expulsão das melhores cabeças, as mais sensíveis, as mais humanizadas e interessadas no desenvolvimento de uma sociedade justa. Essa dizimação intelectual das academias abriu espaços enormes no quadro de professores dos cursos superiores, faltavam mestres, os melhores. Isso foi “resolvido”
estrategicamente, com a formação, pelo Instituto Ford – envolvido no golpe –,
de professores universitários, no atacado, com a mentalidade empresarial, cérebros lavados e enxaguados pra atacar o estado e exaltar a
qualidade e a eficiência das empresas como modelo ideal de sociedade, senão o
único possível. Aos poucos as empresas foram se infiltrando no ensino superior
e hoje ditam regras, valores, comportamentos profissionais desumanizados no
serviço prioritário do lucro, do ganho pessoal, da competitividade desenfreada,
do mundo apresentado como uma arena de guerra onde vencem os melhores e os
perdedores merecem as agruras da miséria, da pobreza, da exploração e do
abandono, enquanto o luxo e a ostentação nojenta de privilégios se apresenta como sinal de sucesso, de eficiência, demonstração de competência. As ciências sociais são vistas como menores, a pesquisa é exaltada e
enaltecida, tendo a parceria e o investimento empresarial – em troca de conhecimentos
exclusivos e patentes – enquanto a extensão... bem, quem é universitário e tá
inteirado, sabe. O tripé “ensino, pesquisa e extensão” foi desequilibrado em
favor dos interesses empresariais. O que inclui a manutenção da ignorância, da
desinformação, da alienação, da “educação” enquadradora e condicionante, do
consumismo como valor pessoal e social, do inferno pra maioria.
A parada é uma rede complexa, insidiosa, infiltrada desde as
instituições públicas, governos, legislaturas, até o íntimo de cada um de nós,
pelos condicionamentos do inconsciente, passando pelos detalhes das relações
sociais e humanas. Superioridades e inferioridades são implantadas,
invisibilidades sociais, competitividades, vaidades, egoísmos são estimulados
ao máximo, a restrição da solidariedade é apresentada como única possível. O
linguajar acadêmico, o academês, serve de cerca de arame farpado pro
conhecimento ficar restrito aos iniciados, ao grupo restrito que será usado na
administração da estrutura social, minoria pra comandar e controlar a maioria,
com direitos respeitados e privilégios graduais. Com o preço, claro, dos medos
inerentes a essa classe, num mundo de pobreza, miséria e conseqüente
criminalidade, da queda no padrão, sob pressão de cobranças e ameaças, de
angústias e frustrações pessoais, de turbulências espirituais e de consciência,
sobretudo pros mais sensíveis, mais honestos e bem intencionados.
Assim, o acadêmico é levado a um sentimento condicionado de superioridade
quando, a meu ver, deveria perceber que está tendo acesso a conhecimentos que são
negados à grande maioria da população – e é um direito constitucional. Além do
mais, a própria universidade depende dessas vítimas pro seu funcionamento, sem
o que não teria condições de existir. E as explora socialmente, com salários
que não permitem uma vida digna, impondo e se valendo da inferioridade e invisibilidade
social ostensiva, no quadro de degradação social em que vivemos. De um lado, a
superioridade, do outro a inferioridade, ambos condicionamentos sociais a serem
percebidos e superados, tanto individualmente em primeiro lugar, tornando a
vida melhor, mais em paz, quanto coletivamente, por conseqüência e nunca antes –
quando certamente seria ilusão, como já se provou em sistemas que se
pretenderam socialistas. As pretensões acadêmicas de superioridade, de melhor
preparo, de direito ao comando, esbarram na realidade. Tudo depende de pobres.
Não se pode comandar,
conduzir, ensinar, aqueles de quem se depende. É preciso servir. Dos
conhecimentos que são seu direito roubado pelo próprio Estado. Falo de vítimas de crimes sociais, não de necessitados, ignorantes ou inferiores. É preciso aprender
com a vivência social dos considerados de baixo, com a sabedoria adquirida na
prática cotidiana de uma sociedade que persegue e discrimina, que seduz pro
consumo e nega condições econômicas de consumir – um convite ao crime -, que
violenta no trabalho, no transporte, no trato com qualquer setor público do
estado, seja escola, hospital, qualquer repartição públicas. Se há exceções, apenas
confirmam a regra e basta observar pra perceber razões – políticas, econômicas
ou cenográficas – pra qualquer uma delas. É preciso servir os conhecimentos
acadêmicos e colher os da sabedoria popular – rotineiramente ridicularizada nas
academias, em clara estratégia de separação. Socialmente, interessa muito mais
misturar esses conhecimentos, retirando os interesses empresariais dos estudos –
pois o que não dá lucros, ou os diminui, não interessa, ainda que favoreça às
populações, o que tampouco interessa.
Por isso o brasileiro é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo e não
há no Estado nenhum apoio à agricultura orgânica, familiar, não há reforma
agrária, nem incentivo à produção de alimentos livres de químicas nocivas à
saúde humana e ambiental. As indústrias alimentícia, de pesticidas e venenos
agrícolas, sobretudo as de trangênicos, com o apoio e a adesão do agronegócio
(e da mídia, sempre), impõem o comportamento do poder público e impedem a
divulgação da realidade do câncer e tantas outras doenças provocadas pelo
agrotóxico em milhões de pessoas, bilhões entre os que plantam e os que comem,
de tantas nascentes e mananciais contaminados. A saúde não dá lucro. O que dá
lucro é a doença. Então os laboratórios farmacêuticos e a indústria da medicina
se infiltraram nas escolas de medicina, na formação dos médicos que, hoje, se
reduziram a receitadores de remédios e de procedimentos em máquinas. Mal tocam
nos pacientes, preferem tocar nos exames e seguir o que está escrito nos
compêndios médicos impessoais, receitando remédios mesmo desnecessários, quando
há acordos com laboratórios e prêmios por vendas.
Também a saúde pública é precarizada, abandonada pelo Estado em
condições de penúria, por força e influência de planos de saúde e das empresas
da medicina lucrativa, a quem interessa uma saúde pública apavorante. Há planos
de saúde populares pra aplacar o medo. Financiamentos de campanhas eleitorais
garantem sabotagens políticas e supressão de verbas, tanto pra saúde pública
quanto pra educação e outros “gastos” sociais.
A educação pública, sabotada como é, serve pra criar ignorância,
enquanto tortura alunos, professores e funcionários com permanente falta de
verbas e condições de ensino mínimas. É preciso manter farta a mão de obra
barata, ignorante, desinformada, conduzível, condicionável, fácil de enganar.
Já a educação particular, destinadas às camadas da classe média, tem como
função formar os diversos níveis dessa classe nas hierarquias da estrutura e,
por conseqüência, nas hierarquias sociais, desde as supervisões e gerências até
as diretorias e altos cargos, tanto civis quanto militares. É impedida a visão
da sociedade como um todo harmônico, onde a solidariedade seja estimulada, a
instrução seja qualificada pra todos, as comunicações sejam pulverizadas em
todos os espaços públicos. Onde prevaleça a cooperação e não a competição.
É proibido denunciar o porquê de tanta injustiça, ignorância, miséria e
criminalidade. É preciso vencer na vida, ser melhor que os demais, o mundo é
assim, a pobreza é inevitável e é culpa dos pobres, infelizmente, o máximo a
fazer é enriquecer pra ser caridoso.
O trabalho é um sacrifício necessário. Ensinam isso pras crianças quando
elas entram na escola, ávidas pelo prazer e divertimento em aprender e lhe
ensinam que o prazer ficará pra hora do recreio, pros fins de semana, pros
feriados e férias. Ao contrário da sua prática cotidiana até ali, as crianças devem saber agora que aprender não pode ser um prazer, mas uma responsabilidade, séria e
ameaçadora. As avaliações são periódicas e o proveito medido em notas. É a
preparação pro mercado de trabalho. Viver nas horas vagas, trabalho é sacrifício, tortura, sofrimento. Por isso a sexta-feira é tão ansiosamente
esperada e a segunda é fonte de depressão. Por isso os feriados, as férias, as
horas vagas se tornaram válvulas de escape das pressões que se convencionou
aceitar no trabalho. Por isso se toma tanto anti-depressivo, pra alegria dos
laboratórios farmacêuticos. Por isso o consumo compulsivo foi passível de ser
implantado como um alívio pros sacrifícios da vida – um proveito empresarial
pra angústia e uma forma de esterilizar arte e cultura, elementos potencialmente
subversivos, transformando em produtos e criando celebridades, tanto na arte
quanto na cultura, pra serem vendidos como mercadorias.. E se faz a
marginalização das formas populares não controladas de cultura e arte. As
controladas são desconteudizadas e apresentadas como folclore. Arte mesmo é a
européia – ou estadunidense, sua decorrência.
Outro foco de sujeição social é a subalternização da mentalidade, do
conhecimento, da cultura ao padrão estadunidense e europeu, branco, melhor se
louro e de olhos azuis. É a imposição do colonizador, a inferiorização do
dominado. Por quê a Grécia é vista como o berço da filosofia nas academias, se
a Índia e a China, apenas como exemplo, tinham códigos filosóficos formados e
sociedades organizadas sete e dez mil anos antes, quando na região da Grécia os
hominídeos ainda batiam pedras e esfregavam paus pra acender fogueiras? Houve
muitas outras civilizações e formulações filosóficas antes, mas a filosofia
grega é a base da filosofia vigente. Criação de subalternidade. Imposta,
assimilada e reproduzida no cotidiano, no dia a dia, em valores, comportamentos
e créditos. Pra aceitação da exploração pelos superiores. O resultado é uma
sociedade inferiorizada, fragilizada diante dos interesses banqueiros e
mega-empresariais e dominadas por elites locais subalternizadas. Em todos os
setores, inclusive e sobretudo os estratégicos.
É preciso ver que o poder político, as instituições públicas, a
administração ainda chamada de “pública” não representa o público, a população
brasileira, mas sim os interesses de um punhado de podres de ricos que se
impõem a uma estrutura construída pra ser controlada, dominando a sociedade.
Assim o Estado se tornou um criminosos contra seu próprio povo, roubando os
direitos constitucionais mais básicos, fundamentais e humanos da grande
maioria, em defesa e a serviço dos lucros astronômicos daquele punhado de
parasitas das multidões. É preciso perceber que a política partidária não tem
condições de oferecer resistência ao poder vigente, o econômico, porque foi
construída conforme os mesmos interesses, com todos os recursos pra impedir as
ações efetivas de atendimento e respeito aos direitos de todos. Financiamento
de campanhas e controle das comunicações (com a mídia privada) num ambiente de
ignorância e desinformação são a garantia da manutenção desse modelo criminoso.
No máximo se consegue denunciar – alguns dons quixotes que conseguem furar o
controle eleitoral, solitários e isolados nos parlamentos ou furiosamente
atacados e difamados pela mídia, quando no executivo, como Brizola e Luiza
Erundina, entre outros –, sem repercussão jornalística, os crimes cometidos por
governantes e legisladores comprados, sob o silêncio estrondoso da mídia.
A raiz primeira desta situação está, volto a afirmar, dentro de cada um
de nós, ainda que pareçamos insignificantes no oceano populacional e na
complexidade estrutural. É possível e necessária a mudança interna, a percepção
da própria vontade bloqueada por vontades artificiais, dos próprios valores
influenciados pelos trabalhos permanentes de formação ideológica, desde as
escolas infantis, fundamentais, de ensino médio e superior até o massacre
midiático-publicitário permanente, nos meios de comunicação e em toda parte
onde vamos ou passamos, em bombardeio constante e profundo. Essa mudança
interna, trabalho permanente, é que se reflete pra fora, na coletividade, com a
eficiência do exemplo, da prática de outros valores e comportamentos. Não há
como pensar numa verdadeira mudança desta estrutura pra outra mais solidária,
humana, igualitária, sem esse trabalho interno eliminando preconceitos, valores,
comportamentos padrão e criando valores de integração e serviço, com base no
respeito e no afeto, no interesse do bem estar coletivo e da harmonia social.