Seguindo a estadia no Capão, seguiram os acontecimentos. Estou com seis encomendas embaladas e prontas pro envio, até hoje sem postar. Um dia fomos a Palmeiras resolver umas coisas, levei os tubos com desenhos pra remeter. Paramos pra comer na chegada, estacionando ouvi o barulho da tampa de trás da kombi, estranha sensação - a de que poderia ter caído coisa do bagageiro na turbulenta estrada de terra, cheia de subidas, descidas e sacodes gerais. Fui conferir, estava mesmo aberta, já olhei esperando ver o tamanho do prejuízo. Dei falta de três das encomendas e, incrivelmente, mais nada. Caixas, estepe, bolsas, ferramentas, cajón, tava tudo ali. Lamentei pelas encomendas, com alívio porque podia ter sido bem pior. Mas perdi o ímpeto de ir ao correio e decidi refazer as remessas em casa. Na volta ao Capão, fui avisado de que pessoas andando pras trilhas haviam encontrado uns tubos que pareciam encomendas na estrada, um deles atropelado, mas dois outros intactos. Afinal, voltaram à noite pras minhas mãos, através de amigos que conheciam as pessoas que acharam. Alívio, congratulações, retribuições foram feitas, as encomendas recuperadas. Os desenhos atropelados foram substituídos, de amassados que estavam. Na verdade gosto desses amassados, marcas são cicatrizes de vivências. Separo pra interferir depois, com tintas ou não, e dificilmente ponho à venda. Cicatrizes são marcas de histórias. Ganharam personalidade própria, ficam guardados pra ocasiões especiais em que são presenteados. Mas a partir daí a viagem ganhou um ritmo que não permitiu a remessa dos seis, novamente juntos, até hoje que estou em Beagá, em pleno carnaval.
Fomos a Feira de Santana, convite na UEFS. No caminho, a gruta sacralizada que já tinha me chamado a atenção em outras passagens foi fotografada. Na paisagem impressionante da chapada, a religiosidade sertaneja mostra suas peculiaridades. Não parei nem pesquisei essa gruta, há um pequeno restaurante caseiro na estrada - estava fechado - e marcas de peregrinação no caminho até a pedra, onde há uma cruz branca na entrada da caverna.
São trezentos e cinquenta quilômetros até Feira. Chegamos no fim da tarde, quase na hora da palestra, fomos ao local e rolava um papo com desabrigados - os chamados "moradores de rua". Assisti um pouco, mas o cachorro se ouriçou com as palmas e roubou a cena, me obrigando a sair com ele do auditório. Fomos à casa dos nossos anfitriões, Vinícius, Ingredy e Iggor, aí banho, janta e toca de volta pro auditório. Expusemos também, claro, dormimos e retornamos ao Capão no dia seguinte, já na preparação pra descida de volta. A palestra estava cheia de gente e interesse, o sentimento de proveito justifica todo o esforço.
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Auditório do módulo 2, na Universidade Estadual de Feira de Santana. |
De Feira voltamos ao Capão, já no preparo pra começar a viagem rumo sul, com a primeira parada em Caetité. Saímos pela estrada de Seabra, onde Celestina exigiu um pneu novo. Eu não havia entendido um caroço surgido na sola, que acabou consumindo a borracha até aparecer a lona. Mas o borracheiro esclareceu tudo, alguma pancada forte arrebentou os arames internos e aí a pressão do ar estufou a área, desgastando o pneu. Com a quantidade de estradas de terra por onde temos passado, não é de se estranhar, algumas em estado tão precário, com tantas pedras, que a velocidade precisa ser a de caminhada a pé. Às vezes dá pra pegar uma velocidadezinha maior, sempre com o risco de empedrar depois de uma curva ou uma lombada - e é aí que tá o perigo, de repente encrespa em pedras ou buracos e fica difícil evitar algumas pancadas.
Seguimos de Seabra em sentido leste, até Lagoa de Dionísio, onde viramos pro sul, estrada ao longo da chapada no lado oposto a Lençóis, oeste da região. Eu tinha visto o mapa no gúgol e era o menor caminho. O que esse gúgol traíra não avisou era que as estradas por ali estavam em péssimas condições, desde sempre. Fomos em asfalto até a primeira cidade, Ibitiara, ali paramos pra comer e pedir informações. A expressão no rosto das pessoas era inequívoca, a estrada era terrível. Mas já estávamos ali e seguimos adiante. Houve até quem duvidasse da Celestina, "com aquela kombi ali? Cês não chegam lá não". Ora, minha senhora, não tem arrego, vamos em frente. Dali a Novo Horizonte o caminho foi duro, a estrada era muito ruim. Realmente mais perto, mas a buraqueira obrigava à lentidão. Foram mais de quatro horas pra percorrer os oitenta quilômetros.
O sol acabara de se pôr quando, numa das encruzilhadas, encontramos uma placa indicativa improvisada, a primeira legível. O caminho passava por Novo Horizonte e seguia pra Ibiajara. Anoiteceu e a estrada, toda esburacada e cheia de pedras, não permitia desenvolver velocidade acima da caminhada. A impressão era de que não tinha fim, ao longe não víamos nada, nenhuma luz. Uma hora pedi a Clara pra fotografar a estrada pelo parabrisa, em movimento mesmo. Ficou uma imagem meio surreal, mas eu gostei.
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A máquina tava com flash, não houve jeito de tirar. |
Havia bifurcações, entradas, e eu no instinto, escolhendo, raras placas indicativas, algumas ilegíveis. Chegamos em Novo Horizonte, passamos, continuava estrada de terra, pior, mais esburacada e empoeirada. Mais bifurcações e entradas. Depois de muito tempo sem encontrar nada, cruzamos um cara de moto, fiz sinal e ele parou. Perguntei se era a estrada certa, ele coçou a cabeça e, enquanto confirmava com um aceno, disse "mas tem uma serrinha terrível de passar aí, a estrada vai piorar muito". Nós nos olhamos sem dizer nada, nem precisava - voltar nem pensar -, vamos em frente. A gente já tinha uma dica, dada em Novo Horizonte, "quando encontrar uma ladeirona braba, repare uma saída antes, de pedra, meio escondida no mato, passe por ali que contorna o morro e sai do outro lado". Tão escondida no mato que passamos direto, subindo uma "parede" de pó e buracos até ficar impossível. Aí percebemos que era a "ladeirona braba", descemos de costas, de um lado o barranco, do outro um abismo escuro. Pisca-alerta ligado, por via das dúvidas, bem devagar, mas como não passava nada, não houve problemas. Passamos pela estradinha de pedras, também inclinada ao extremo mas, com a aderência melhor, passamos.
Estávamos na BA 152 e, até chegar a um asfalto, muito precário ainda, passamos por Ibiajara e Tanque Novo. Aí começou um asfalto tão esburacado que me fez ter saudade da terra. Era a BA 156, nos levou à BR 430, aí, sim, uma estrada transitável. Chegamos a Caetité no início da madrugada. Thulio e Ailton nos esperavam na entrada da cidade. A pousada MCM, de Márcio e Ione, que nos acolheram, ficava ao lado, diante de uma praça, ao lado de um quartel.
A exposição foi no dia seguinte, na praça da árvore. Pra minha surpresa dois policiais armados levaram o som e instalaram. Eram amigos dos que me convidaram, músicos ambos. A exposição começou bem antes da palestra, coisa rara, ficamos por ali papeando, trocando idéias, enquanto chegava mais gente. A data não favorecia, véspera de carnaval, mas veio gente suficiente pra fechar o círculo da arena no meio da praça. Roquenrou, o cão, andou livre na área até a hora de começar o papo, aí se recolheu - ou foi recolhido - à Celestina, ali bem próxima.
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Chegamos cedo, armamos a exposição e esperamos o povo chegar. Celestina ficou perto. |
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À noite, palestra - de camisa vermelha, falo (com microfone) ao fundo. Clara e Tito na exposição. |
O dia seguinte, sábado "de carnaval", tomamos o rumo de Montes Claros, a caminho de Belo Horizonte. Paramos pra dormir a 50 km de Sete Lagoas, às quatro da manhã. Asfalto bom é outra coisa.