quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Distorções, raízes, indução e subversão


Ser radical não é ser extremista. Buscar as raízes, as razões de ser das coisas, isso é ser radical. Mas ser radical, numa sociedade que induz à superficialidade, é subversivo. Por isso se trocou o significado. Radical se tornou "agressivo", "briguento", "intolerante", "desagradável", "polêmico", se distorce o significado da palavra pra evitar a sua compreensão. E evitar a sua prática. Ser radical é ser profundo, reflexivo, buscar entender a realidade indo às raízes das coisas. Posso ser gentil, tímido e, ao mesmo tempo, radical. Mas essa distorção do significado não é nenhum acaso.

Buscar as raízes da miséria e ignorância, por exemplo, ou o por quê de tanta ânsia de consumo como valor social, ou o por quê do tráfico ser combatido há tantas décadas, com fúria, guerra, ódio e matanças, e não ter sido extinto - ao contrário, parece tão forte como nunca, imbatível. O por quê da polícia ser tão agressiva, sobretudo com os mais pobres; os por quês dos serviços públicos serem perversos, insuficientes, torturantes quando se trata dos mais sem direitos da sociedade, dos mais pobres (em saúde, em educação, em informação, em moradia, em saneamento, em tudo). Ou por quê as comunicações são dominadas com fúria pela mídia comercial e o Estado está distribuindo o conversor pra televisão digital na cesta básica. São muitos por quês a perguntar e, se a gente radicaliza, ou seja, busca a raiz das coisas, percebe a infâmia deste modelo de sociedade.

Entender por quê preciso viver um inferno pra ter tanta coisa que não preciso, competindo, aturando situações horríveis, na avidez pelas sextas e na tristeza das segundas, ao custo das coisas que verdadeiramente preciso, minha paz de espírito, minha consciência tranqüila, a troca de afeto com a coletividade, o sentimento de utilidade, de satisfação em viver. A sociedade impõe um modelo de educação centrado na competição, na disputa, em vencer, que apresenta o mundo como uma arena competitiva onde é cada um por si. Seria melhor se tivesse seu foco na formação de pessoas pra integrar uma coletividade harmônica ou que pretende alcançar a harmonia social. Mas a educação imposta atende interesses empresariais, temos os bancos e as mega-empresas no poder, nos bastidores dos poderes dito públicos, dominando e determinando de forma enviesada (a chamada "política") a formação das crianças, das pessoas, de corações e mentes através do modelo empresarista de educação e do controle das comunicações, da mídia que invade todas as casas, formando mentalidades e deformando a realidade.

Não venho trazer "a solução", não teria essa ingênua pretensão. Mas creio que mais e mais pessoas enxergando mais e mais a realidade além da que nos é mostrada, farão surgir - como estão fazendo os grupos de exceção que já existem, invisíveis e invisibilizados pela mídia, quando não atacados ferozmente com calúnias, difamações e criminalizações várias - soluções diversas, locais, regionais, ao longo do tempo e das gerações, como percebo que é o processo de evolução planetária. Estão se formando, continuamente, pessoas que vão construir uma sociedade humana, menos injusta, menos perversa, mais solidária, mais amorosa. O tempo de uma vida é um grão de poeira na eternidade incompreensível.

Participar com o melhor da minha consciência é o que posso ter de mais satisfatório e, pra isso, devo estar em estado de conscientização permanente, de migo pra comigo. As raízes mais profundas a que tenho acesso estão em mim mesmo. Gosto e preciso ser radical. Preciso e gosto de trabalhar com isso. Assim tenho satisfação em viver, num mundo onde se toma toneladas de anti-depressivos todo dia. Um egoísmo que resultou coletivo. Vai ver que nem todo egoísmo é ruim. Aliás, já se reparou como estão ligados individualismo a egoísmo? Não faz o menor sentido, ou faz, mas no sentido da distorção de significado. Individualista é a pessoa que respeita o indivíduo, seja ele o que for, do jeito que for, tenha a forma ou a maneira de ser que for. Desde que respeite todos, merece o respeito de todos. Isso é individualismo. Mas, na sociedade da padronização, não pode. É preciso padronizar formas, pensamentos, comportamentos, visões de mundo, desejos, objetivos de vida, valores pessoais e sociais, pra manter a sociedade como é. Então se distorce o significado e individualismo se torna sinônimo de egoísmo. Porque o significado é subversivo.

Laboratórios de pensamento trabalham no controle mental exercido pela mídia e pelo seu massacre ideológico-publicitário. Seria bom se perguntar "será que o que eu quero da vida é o que eu quero mesmo ou eu fui induzido a querer?" Essa mesma pergunta pode ser feita com "visão de mundo", com "valores", com muitas coisas. Alguns dirão que é alucinação minha e eu recomendaria ouvir com atenção a letra do Belchior em Alucinação. Respeito qualquer opinião, mas mantenho a minha enquanto não perceber algum erro. E acho que a sociedade precisa de mais radicalismo e individualismo - reflexão e respeito. A ordem vigente é desumana, anti-vida. É preciso subvertê-la, evidentemente. Estamos todos num inferno. E as exceções do inferno são os demônios, são o inimigo que se faz de "admirável", de "exemplo inalcançável", sedução e indução.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Trator de Palmeiras agride Celestina, a kombi.

Ele veio de ré, direto, sem olhar pra trás.
Estrada Palmeiras-Vale do Capão, o trator operava espalhando pó de pedra - não sei por que cargas dágua usam isso, levanta uma poeira densa e fina no ar. Paramos à distância, coisa de 50 metros. Ele atravessava, buscava carga na pá, jogava no chão e espalhava de ré, com a própria pá. Não havia nenhum outro funcionário, nada de cones, balizas, nenhuma sinalização, ninguém pra orientar os carros ou o tratorista. Ele pegou mais uma carga do pó, jogou e veio vindo de costas, alisando o chão. Eu vi que vinha na nossa direção, mas a cabine era de vidro e eu imaginei que ele estava olhando pra onde ia. Só que ele não estava, quando vi a pá da traseira chegando perto demais, olhei pelo retrovisor e tinha um carro parado bem atrás. Não deu mais tempo de nada, a pá traseira quebrou o parabrisa e empurrou a kombi pra trás meio metro. Com o barulho e os gritos, o trator parou. Fui ao tratorista, na cabine, um menino de pouco mais de vinte anos, assustado e com medo de perder o emprego. Quis dizer que "cês também enfia o carro debaixo da máquina", esboçando uma agressividade defensiva, mas não pode explicar o movimento sem olhar pra onde estava indo. Pedi pra ele chamar a chefia, um responsável, ele ligou pelo celular. Aí começou a comédia.

Chegou uma moça, num carrão, dizendo ser secretária do vice-prefeito. Vendo as coisas, ouvindo as explicações, ligou pra mais alguém vir. Minha impressão é que disseram pra ela "vai lá ver o que tá acontecendo" depois da ligação do garoto. Em pouco tempo, chegou o secretário de infra-estrutura da prefeitura. Quis saber se a kombi tava com os documentos em dia pra registrar a ocorrência. Claro, kombi velha, qualquer falha aí e poderia esquecer o assunto ali mesmo - e com ameaças. Mas tá tudo certim com os doc da velha senhora, até a vistoria do gás tá em dia, coisa que nem mesmo os guardas rodoviários lembram de pedir. Concordamos em registrar a ocorrência, até pra ir a Seabra fazer o conserto - tem um posto de polícia rodoviária na chegada que pode nos parar pelo vidro quebrado. João Batista, esse é o nome do secretário, discordou quando falei que seria preciso ter mais funcionários e sinalização, "aqui não precisa disso não". Clarinha perguntou se as leis de trânsito no país não valiam por aqui e ele ainda insistiu, "aqui nunca teve isso não". A reação dela fez o secretário parar de falar, se afastar e prestar atenção no celular. Pra chamar a polícia civil, segundo ele, e fazer a ocorrência. Em seguida, disse pra irmos nós mesmos na delegacia, que tinha falado com o responsável - imaginei que era o delegado, mas soube que não fica delegado aqui, talvez escrivão ou agente. Tiramos várias fotos, registrei os números do trator e fomos. Duzentos metros depois um carro em direção contrária sinaliza pra nós. Paramos, era o delegado - ou, sei lá, o responsável pela delegacia -, estava indo ao fórum, em Iraquara, disse que vinha ver o acidente e que dissera ao João Batista que estava de saída da delegacia pro forum. A delegacia estava fechada, não havia ninguém pra registrar a ocorrência. O secretário não tinha como não saber disso, quando nos mandou lá. Decidimos ir à prefeitura pra falar com ele. Chegando lá, Clara entrou e foi informada por uma funcionária que a secretaria da infra-estrutura era noutro lugar e o secretário devia estar lá. Estávamos dando a volta na praça quando João Batista desponta vindo à prefeitura. Fiz sinal e ele parou. Recomendou de novo o BO, afirmou estar em contato - ele tinha passado o uatizape dele pra Clarinha - e que "tudo se resolveria". Sei. Em seguida João encostou o carro na porta da prefeitura, abriu a porta da frente e quem entrou? A funcionária. Ela estava esperando o secretário, que a levou pra almoçar, mas disse que ele devia estar na secretaria, longe dali. Eles almoçaram, inclusive, na mesma "comida caseira" onde nós comemos. Boa comida e preço baixo. Fomos depois até a delegacia, que estava realmente trancada - parece que as "falas públicas" se desacreditam por si, é preciso conferir.

Durante os acontecimentos, ficamos sabendo que o trator não é da prefeitura, mas do vice-prefeito. Está "emprestada" à prefeitura porque a máquina do município está quebrada. Que em Palmeiras não vigoram as leis sobre obras em rodovias - um tratorista sozinho operando numa estrada aberta, sem sinalização, sem funcionários, nada pra orientar os motoristas e os movimentos.

Com tudo o que penso dos poderes chamados "públicos", não espero muito. Na verdade, não espero nada além de engabelação, promessas mentirosas, adiamentos e omissão. Gostaria de estar errado, mas seria preciso pessoas de bom caráter, senso de justiça, que assumissem a responsabilidade pelos erros cometidos que me deram um prejuízo grande, pro meu padrão econômico. E isso, na máquina do Estado, é coisa rara. Sobretudo nos postos de mando. Como não sou ninguém importante (leia-se influente ou cheio da grana), sei bem o trato que me espera. Mais uma vez, espero estar errado. Se estiver e me pagarem o prejuízo, volto aqui pra contar.

Amanhã vamos a Seabra - depois de registrar a ocorrência pela manhã, conforme nos disse o policial. Vamos gastar o que não podemos no conserto, lanternagem e parabrisa. Na volta, procuramos o secretário da infra-estrutura de Palmeiras, João Batista, pra ver o que acontece. Aguardemos.

O agressor e a agredida.
Foi uma cena e tanto ver a escavadeira rompendo o vidro e quase entrando.
A ressaca da porrada é sempre triste. Mas considerar que ninguém se machucou, além da kombi, já alivia. Celestina resiste.


Uma grande covardia...


Meio metro de arrasto, com o pé no freio pra não atingir o de trás. Não atingiu.
A publicidade do poder "público" e um efeito da sua ação. Tá certo que um é estadual, outro é municipal, mas no fim é tudo a mesma coisa, posam de públicos mas defendem interesses privados como prioridade. É o modelo da nossa sociedade.

sábado, 25 de agosto de 2018

Delicadamente expulsos de Igatu, Bahia





O movimento pinta quadros mutantes pelos caminhos.

Saímos de Vitória da Conquista pelas duas da tarde, refizemos o trajeto de vinda, pelas estradas no sul da Chapada Diamantina. O destino era o povoado de Igatu, no município de Andaraí, onde haveria um festival de música. Anoiteceu pelo caminho, durante o fim do dia entramos na estrada pra Mucugê e vimos a placa quebrada que, na vinda, nos fez errar o caminho. Passamos pelo cemitério bizantino, fechado mas iluminado, seguimos até a entrada do povoado, onde pegamos a estrada de terra por alguns quilômetros, até começarem as pedras, pelo jeito colocadas há séculos, irregulares de obrigar à velocidade de caminhada. Chegando em Igatu, havia uma barreira com guardas que não deixaram a gente passar. Paramos numa área aberta pra ser um estacionamento e fomos a pé coisa de meio quilômetro. Era quinta-feira, estava começando o evento, já com palco e músicos locais (da Chapada). Encontramos alguns conhecidos, tomei umas brejas poucas e voltamos pra dormir no estacionamento. Era madrugada e a guarda permanecia. Quando amanhecia acordei e eles não estavam mais, pudemos então entrar em Igatu, impressionante, tudo de pedra e na pedra. Fomos até a área dos cemitérios, havia espaço bastante e plano, coisa rara no lugar. Deixamos lá a kombi, depois de descarregar os painéis e a banca na praça.

Estávamos lá expondo, já com algumas poucas vendas, quando chegou a guarda municipal, dizendo que não podia expor ali, tinha que ser no "mercado", um espaço restrito onde se aglomeravam os artesãos e os artistas com suas coisas. Uma clara segregação, não havia espaço pra todos, nem apelo pras pessoas entrarem. Tentei argumentar, mas parecia guarda de cidade grande, não tinha diálogo, só a "determinação superior", uma lei municipal qualquer que dava no mesmo resultado de sempre: "não pode". Resolvemos ir embora, já tenho tempo suficiente de rua pra não aceitar esses esculachos das convenções com as pessoas não convencionais, uma repressão disfarçada de "regulamento". Igatu ficou pra trás e nós fomos adiante. Ainda era dia e a estrada estava linda. A "festa" continuou sem nós. As burocracias revelam a ignorância artística do sistema. Mais que a ignorância, a repressão aos que não estão de acordo com o sistema social, demonstração de pequeneza cultural. Uma pena, num lugar tão bonito, com uma história tão forte, um povoado que já teve vinte mil pessoas buscando pedras preciosas, cheio de ruínas de casas construídas nas pedras, por cima e por baixo.   

As "otoridades" locais, se tivessem alguma sensibilidade, deveriam se envergonhar da repressão aos artistas - que negarão, obviamente, alegando que "até" destinaram aquele galpão pras exposições dos visitantes. O tal galpão estava lotado, os artesãos e artistas se apertavam, era inviável colocar seis painéis de desenhos e mais uma mesa com fanzines, ímãs, pequenos desenhos, camisas e livros. Na verdade, é apenas uma forma de tirar os artistas das ruas, da praças, onde se colocariam em harmonia e sem atrapalhar ninguém, se os institucionais não se metessem. Uma segregação hipócrita, como hipócrita é todo o poder dito "público", que prioriza os interesses empresariais, o patrimônio, o lucro, muito acima dos direitos da população, acima da vida, do equilíbrio da natureza, de tudo. O que houve em Igatu (e que acontece cotidianamente, em qualquer lugar) é um reflexo do modelo social em que vivemos, o predomínio de uma mentalidade superficial, embrutecida, que não percebe os valores da parte sutil, da alma, nem a necessidade desse desenvolvimento.

Essa placa nos fez errar 40 km. Tivemos que voltar, no todo foram 80. Sem crise, dirigir à noite em estrada deserta é ótimo. Ainda mais em noite de lua cheia.


Depois de Anagé, o trevo da estrada pra Mucugê e Igatu. A placa está à esquerda. Quer dizer, o que restou dela.
                                                                     

O fim do dia, de dentro da Celestina.
                                           
A casa de pedras debaixo da pedra.

Há muitas casas nas pedras e das pedras em Igatu.


Os gentis rapazes da guarda, implacáveis no cumprimento das ordens anti-artísticas do município de Andaraí.

"Perdoai, pois eles não sabem o que fazem..." Quem sabe é quem dá as ordens mas não dá as caras.
O caminho pra Andaraí é assim por uns dez quilômetros, pedras irregulares.

Apertos aqui e ali são comuns.


O rio exibe suas areias, pouca água.


domingo, 19 de agosto de 2018

Três textículos - não necessariamente ligados

Fora da sintonia trabalhista
Quando entrava nos dezenove anos, despedi meu último patrão. De uma forma bem fácil, simplesmente dizendo a ele pra falar baixo comigo. Me despediu na hora, mas não falou nada, só soube no fim do dia, quando o barco atracou - eu era mergulhador. Pagou tudo e mais ainda, pra não me ver nunca mais. Era angolano, o cara, empresário lá e cá. Passei dois meses trabalhando sem ele aparecer na empresa. Em uma semana da sua presença, despedi ele. E resolvi que nunca mais teria patrão na vida. Aliás, nem patrão, nem empregado, nem chefe, nem chefiado, nem superior, nem subordinado. Não me dou bem com essas coisas. Eu não sabia como seria. Descobri vivendo.

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Nem solução, nem saída. O que tem é a lida.
Andam me perguntando por "solução", por "saída", já que os caminhos da institucionalidade me parecem minados, controlados, dominados pelos verdadeiros poderes, os econômicos. Não gosto de recomendar comportamentos. Já respondi "bota na água e mexe, se dissolver aí tem uma solução". E também que "a única saída é a morte", mesmo sem saber se é isso mesmo, talvez morramos e não saiamos, veremos depois da passagem por esse portal. Não preciso saber de verdades pra perceber as mentiras. E se não sei, não quer dizer que vou me deixar enganar, quando as evidências estão esfregadas na minha cara. Gente largada como lixo, ignorância, analfabetismo, fome, miséria, tudo muito fácil de resolver pra uma sociedade humana de verdade. Só que esta estrutura social é desumana, por ser empresarista, uma ditadura banqueiro-mega-empresarial exercida através do aparato estatal tendo como porta-voz a mídia. Desde que "derrubaram" a monarquia.

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Mentira e distorção como matéria-prima da publicidade
A publicidade no rádio diz: "A Petrobrás mudou... e está seguindo em frente." É verdade, o asqueiroso presidente nomeou um cara que nunca foi funcionário pra presidência da estatal (a constituição proibia isso, mas uma "emenda" safada pôs uma vírgula e abriu, "a não ser por determinação do presidente da república") e ele tratou de mudar mesmo, amputando distribuição, paralisando refinarias que cobriam todo o consumo interno de derivados (gasolina, diesel, querosene, ... - o que obrigou à importação destes produtos), despedaçando a melhor petroleira do mundo (nenhuma outra possuía condições de buscar o petróleo de alta qualidade do pré-sal). Um projeto de lei do senador Serra praticamente doou o petróleo (cru) pras transnacionais do petróleo, Temer "perdoou" mais de um trilhão em impostos devidos por essas mesmas petroleiras. Enquanto isso, acabam-se com aposentadorias, direitos trabalhistas, ataca-se ferozmente a educação e o acesso da população como um todo a ela, destróem-se e cortam-se programas sociais que diminuíam o sofrimento de parte das vítimas permanentes dos crimes sociais cometidos pelo Estado, numa rotina macabra. Enquanto isso, a mídia faz a mão do mágico, que engana o público no ilusionismo de sempre. A Petrobrás "mudou" mesmo. Amputada, esquartejada, infiltrada, sacaneada, diminuída. E "indo em frente", na direção dos interesses estrangeiros inconformados com uma empresa estatal tão formidavelmente superior às suas petroleiras internacionais criminosas. Que o digam os países produtores de petróleo.









sábado, 4 de agosto de 2018

Embriões da nova sociedade

Fukushima despeja radioatividade no oceano Pacífico há oito anos. O rio Doce despeja metais pesados no oceano Atlântico há quase três. A população dos mais de oitocentos quilômetros do vale do rio Doce está exposta aos metais pesados e tem câncer, muitos. As mineradoras destróem vales e mananciais, distribuem resíduos químicos mortais em todo lugar em que se instalam, poderes públicos calados (ou mentindo) e cúmplices, pelo colossal poder econômico e pelas estratégias de infiltração e domínio das mega-mineradoras. O agronegócio, grandes espaços de território onde se cultivam transgênicos de todo tipo, seca pra irrigação ou empesteia com fertilizantes e venenos agrícolas nascentes, rios, lagoas, lençóis subterrâneos. Envenena a terra, os bichos, comunidades pobres, aldeias indígenas, populações ribeirinhas. A natureza é morta, cotidianamente, e com ela a vida. Os aquíferos foram vendidos a empresas internacionais que sugam o máximo da água pra exportação, na ânsia de lucro. As águas secam nas periferias de muitas grandes cidades e também de cidades médias e pequenas, as doenças se espalham, todo mundo toma remédio, o atendimento médico falta às multidões, o alimento industrial adoece.

Na África, na América Latina, onde a miséria obriga a migração de milhões, e nos países em guerra por conta do petróleo, onde é a violência e a destruição o que empurra outros milhões, se forja a mistura, a miscigenação da raça humana do futuro. A ameaça das bombas atômicas paira sobre o hemisfério norte, onde estão concentradas as bombas e os poderes mundiais, as ameaças e as maiores guerras em curso. Na África, as guerras são mais explícitas entre as mega-empresas ocidentais e os povos locais, os interesses não se disfarçam em nada. Em nossa latinoamérica, a hipocrisia domina os poderes públicos, debaixo do mercado financeiro, dos grandes bancos mundiais e das mega-transnacionais do petróleo, da mineração e outros interesses empresariais. A miséria e a pobreza, a ignorância e a desinformação são impostas às multidões. O egoísmo e o consumismo são implantados nas classes médias, como cabresto pra administração da sociedade em troca de direitos e até alguns privilégios. A conivência e a cumplicidade com os crimes sociais são exigidas, a perversidade com as vítimas desses crimes é premiada.

Nas áreas de exclusão e extrema exploração, em meio ao abandono, surgem focos ainda embrionários de uma nova sociedade, uma nova mentalidade, novas formas de se relacionar, novos valores pra se viver. Isolados, em meio à escuridão de consciência, são visíveis a olhos atentos. Dispersos, sem nenhuma articulação, sem saberem uns dos outros, estão nascendo autonomias psicológicas, comportamentais, artísticas, "loucas" em seus locais periféricos, mas sem perseguição, sem agressividade, apenas uma respeitosa e gozadora estranheza. Uma das leis comuns às periferias é que se pode ser qualquer coisa, seja o que for, desde que não incomode nem prejudique ninguém. Não quero dizer que nestas tantas áreas não exista discriminação e preconceito - isso é característica da sociedade como um todo, uma indução social permanente pelo aparato midiático e seu massacre ideológico-publicitário e, por isso mesmo, existe em qualquer meio. Mas a lei do respeito é uma lei implícita que vigora nas relações periféricas, quem anda por aí sabe do que tô falando. Essas exceções mentais não são hostilizadas, ao contrário, são olhadas, na maior parte das vezes, com curiosidade. E é bom que seja assim. É uma autonomia que passa pela dispensa de consideração social. A percepção de que tudo o que a sociedade tem a oferecer aos periféricos é precariedade, maus serviços, exploração, desprezo, agressividade, repressão e ausência faz com que se perca a consideração pela administração pública, pelos valores sociais, pela sociedade organizada, porque organizada de cima sobre o esmagamento dos de baixo. Isso faz com que a consideração social perca o valor. E se ganhe autonomia psicológica, auto-estima como resistência, capacidade de superação. Em várias comunidades em muitos lugares diferentes estão surgindo sinais de autonomia, seja em hortas comunitárias, cooperativas artísticas, plantas medicinais, rádios comunitárias, jornalismo independente - busca e distribuição de informações além mídia -, enfim, pequenos, às vezes pequeníssimos grupos, aparentemente isolados, começam o esboço da sociedade que surgirá dos escombros desta que caminha pro seu próprio colapso. Exatamente onde devia ser, nas periferias, nos espaços abandonados pela sociedade, de onde se retira a "mão de obra barata" que põe tudo pra funcionar.

Afinal, pra construir uma nova sociedade mais humana, ninguém melhor do que os que carregam o mundo nas costas, que lutam com dificuldades todo o tempo, roubados nos seus direitos, que aprendem a solidariedade como ferramenta de sobrevivência. Na longa agonia de morte desta sociedade desumana, surgem os embriões do que nascerá na solidariedade da reconstrução. Um processo, digamos assim, "geracional" - de geração em geração, cada uma na parte que lhe cabe e focalizada na formação das futuras, exemplificando em primeiro lugar. É o que estou vendo nos embriões de consciência nas periferias. Ainda embriões - sendo gestados em barrigas periféricas. Criando novas formas de se relacionar, entre si e com o mundo, afetivamente, de igual pra igual, com respeito, profundidade e disposição ao entendimento, construindo e priorizando a harmonia coletiva, pouco a pouco eliminando as condições de existência do egoísmo, da competitividade, dos condicionamentos profundamente enraizados no inconsciente das populações por tantas gerações. Exceções ainda, invisíveis ao sistema social como invisibilizadas são as periferias e favelas - e é bom que seja assim pra que se desenvolvam - mas são essas exceções os embriões da nova sociedade, que têm a função e o poder de contaminar e se alastrar pra brotar dos escombros da velha estrutura social que, depois dos muitos e inconformados espasmos, estará inapelavelmente morta.







Todas as fotos de Maria Clara, em São Mateus, zona leste de São Paulo, 2017.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.