quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O último de um povo massacrado

A fuga era desde criança, desde que se lembrava. Seus pais, avós, os ancestrais, muitas aldeias foram deixadas pra trás, muitos lugares, sempre mudando quando se aproximavam os civilizados, com suas armas de fogo e máquinas de derrubar as florestas. Enquanto viviam sossegados, caçavam, pescavam, faziam suas coisas, canoas, casas, redes, comidas, festas, danças, cultuavam os espíritos da floresta, do céu, da terra, da água, do dia e da noite. Até chegar de novo o povo das armas, da destruição e da morte, das doenças e do sofrimento. Aí era pegar o que dava pra levar e sair fora mais uma vez, os velhos na frente pra dar o ritmo, mulheres e crianças logo depois e os guerreiros atrás, dando proteção. O cacique ia na frente com os velhos pra ouvir os conselhos. Mas essa decisão e organização se deu depois de muitas mortes, os civilizados traziam presentes, o povo adoecia e morria. Chegaram os garimpeiros, os madeireiros, os jagunços dos fazendeiros. Trouxeram a água ardente e muita arma. Os civilizados atiravam, tocavam fogo na aldeia, matavam os homens, escravizavam as mulheres, abandonavam os curumins nos matos, foram muitos tempos, foi perdida a esperança de pacificar os civilizados, agora é só fugir e fugir, a cada aproximação. A tribo diminuía, poucas crianças, muitos mortos. Então fugiam em canoas, de noite pra não ser visto, de dia se escondia as canoas com folhas, comer, dormir, esperar a noite pra continuar viagem, sempre em busca de floresta ainda não atingida, de terras sem civilizados. Onde os mais velhos diziam, se fazia a nova aldeia.
Depois chegaram máquinas que voam. Umas de asas abertas, soltando veneno que queimava a gente por dentro. Outras eram como besouros, paravam no ar, tão alto que as flechas não alcançavam, de lá jogavam paus de trovão que vinham explodir cá embaixo, destruindo, matando, despedaçando casa, gente, tudo. Morreu gente, velho, criança, homem, mulher e toca fugir de novo. A última aldeia tinha pouca gente, mas ainda tinha família, mulher com filho, cacique, pajé, era pouco mas era um povo ainda. Caçava, pescava, plantava a roça, colhia, vivia enfim.
Aí veio o ataque que acabou com o povo. No amanhecer do dia, de repente, o barulho dos tiros explodiu, seguido de gritos de dor, raiva e desespero. Ele se jogou da rede no chão antes de entender o que acontecia. Viu a rede da mulher, de baixo, já pingando sangue. Desesperado, levantou e correu até ela, que tinha a criança no peito, as balas já tinham varado as duas, da cabeça da mãe escorriam os miolos cinzas, a criança soltara o peito, uma bala atravessara seu pequeno corpo inteiro, da perna ao ombro, na diagonal. O desespero deu lugar ao instinto de sobrevivência, ele correu em direção à porta, abaixado, olhou e viu várias luzes explodindo a cada tiro, nos matos em volta. Disparou na direção do mato mais próximo, abaixou atrás do primeiro capim e viu, do seu lado, um homem com a espingarda apontada pra aldeia, pros parentes em pânico. Que também o viu e já virava o cano na sua direção, quando ele, com um pulo certeiro, arrancou a arma pelo cano, girou no ar e, como uma borduna, arrebentou a cabeça do sujeito com o cabo de madeira. Sumiu pela floresta ainda escura e só tempos depois percebeu a mão queimada e o tiro na perna. A dor e, depois, a febre, a inflamação até que a bala saiu pelo outro lado da perna. Pensou que ia morrer, quis mesmo morrer, mas a ferida foi melhorando até cicatrizar.
Tempos depois encontrou cinco parentes que tinham sobrevivido ao ataque. Todos homens. O encontro foi de euforia, de alegria, apesar de rápida, com o peso da lembrança recente trazendo o silêncio. Estavam mortos como povo. Sabiam serem os últimos, que a tribo fora condenada. E viveram conformados com isso, sem outra alternativa, só restava viver mesmo e esperar o destino. Anos passaram, conseguindo manter distância do povo da morte, das máquinas da destruição, se embrenhando nas matas, sempre em movimento, raramente parando tempo suficiente pra plantar e colher. Caçavam e coletavam, só plantavam quando estavam bem seguros do seu isolamento.
Um dia estavam num igarapé se banhando, haviam já comido uns peixes e se lavavam. Do outro lado, no meio do mato, estavam uns civilizados armados que, como é comum, atiraram sem motivo nenhum, só por serem índios. Pegos de surpresa, morreram cinco, sobrou um, que sumiu voando baixo pelos escuros da floresta, ele, sozinho agora e pra sempre.
Em Rondônia, 1998, dois indigenistas da FUNAI souberam da existência de um índio solitário, que vivia na floresta fechada. Os indícios espantaram os indigenistas, abrigos com profundos buracos cavados na terra - um tipo de habitação não catalogado por antropólogos. Ele mudava de abrigo a cada aproximação. Uma única vez o viram, e ele demonstrou com agressividade e clareza não querer nenhum contato. E sumiu novamente na mata fechada.
No relatório foi escrito:"...ele, no seu desespero e ódio, não deseja neste momento dialogar ou receber a visita de quem quer que seja. É seu direito: mais do que qualquer um ele sabe o que foi perder seus parentes e seu povo, envenenado e baleado pelos mesmos" (na sua visão - n do A) "que agora aparecem como amigos, para lhe oferecer ferramentas e comida. Ele está só e parece querer morrer assim. É seu direito".
E o Estado o deixou em paz. Embora eu duvide que a "sociedade", em sua ambição, o tenha feito.

12 comentários:

  1. Eles só querem viver a simples rotina deles, o ser humano as vezes ou quase sempre pratica esse genocídio por apernas riqueza material

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  2. É triste saber como são tratados os índios nesse nosso País.

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  3. Eduardo, gostaria de retomar os contatos para publicação do seu livro.
    Por favo retorne

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  4. Eduardo sem palavras para lhe descrever! Me identifico muito com seus vídeos. Quando a pessoa ganha conciencia tudo muda... parabéns pelo trabalho! Daria tudo por 30 minutos de conversa com você, abraços. ... Felicidades! Thiago Vaz

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  5. Eles estão destruindo tudo! Pessoas, plantas e animais estão morrendo. A própria amazônia está morrendo e isso é desolador. Tenho a sensação de impotência perante a tudo isso... O q fazer?

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  6. Gostaria de saber qual o fator, que você acredita, que regi a mentalidade social? E se sempre foi assim, e se não, o que mudou ou o que está mudando dentro da nossa mente, para o que estamos caminhando se tornar?



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  7. A HUMANIDADE NÃO É RUIM, RUIM SÃO OS EMPRESARISTAS.
    CADA VEZ QUE COMPRAMOS UM CARRO NOVO, É 1 ÁRVORE QUE É QUEIMADA NA AMAZÔNIA E 1 ÍNDIO QUE É MORTO.
    Nós não somos ruins, os grandes empresaristas que não são humanistas.

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  8. É triste ver que essa realidade se reflete nos dias atuais, os nativos sendo tratados como preguiçosos e a Amazônia como produto, fonte pra enriquecimento de magnatas, ideia perpetuada pelo próprio estado em seu "maior representante". Se essa é a sociedade civilizada, meu maior prazer é ser marginal à seus ideais.

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  9. Oi Eduardo, tem um vídeo que você fala de um livro escrito por enfermeiras que trabalhavam em hospitais de doenças terminais, pode me passar o nome do livro?

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