Lembro dos pequenos diretórios do partido, ainda nos últimos anos da década de setenta, quando ensaiava viagens de carona, aprendendo a fazer pulseirinhas, mas com uma grana pequena "porém segura" na carteira. Pelos oitenta adentro, já por conta própria, pedinte, "micróbio", depois com crianças, vivendo de artesanato, viajando muito de carona, dormindo sobre papelão, em casas abandonadas ou em construção, em quebradas e cantinhos, sob marquises, quando via uma casinha com a estrela vermelha, um diretório, eu entrava e sempre encontrava um olhar simpático, oi, tudo bem? Os murais interessantes, a receptividade, quer uma água, um café? Papos questionadores como os meus, apontando as injustiças sociais, trabalhos nas comunidades, juntando as pessoas, com um trato afetivo e respeitoso, ainda que sempre insistindo na “filiação” e tendo que ouvir “já sou filiado à minha consciência”. A resposta meio que desconcertava, mas prevalecia o respeito e continuava a sintonia. Víamos o mundo de forma parecida e queríamos as mesmas coisas, justiça, respeito social, investimento pesado em educação, na formação de uma população instruída e consciente de si mesma, com auto-estima e capacidade de raciocínio e percepção, o tal senso crítico.
Os anos foram passando e meu trabalho evoluindo, os pequenos diretórios estavam desaparecendo, mas eu trabalhava entre sindicatos e associações, cheios de gente "de esquerda", onde encontrava pessoas mais reflexivas, mais engajadas em mudanças sociais, mais questionadoras e profundas que a maioria alienada. Esses compravam meu material e eram, digamos assim, o meu público. Tava sempre nas passeatas e manifestações, pintava faixas, fazia cartazes, distribuía geral, por conta própria. Eu olhava as formações coletivas com o olhar de fora – sentia o “de fora” por não ser “filiado” –, como os grupos se subdividiam com discordâncias – e era corrente pra todo lado. Os simpáticos continuavam simpáticos, mas eu percebia uma quantidade de pessoas arrogantes nesses meios. Eram os considerados “direita” pelas pessoas que tratavam comigo, “conservadores”, embora eles mesmos se considerassem elite de esquerda, ou esquerda ideológica, sei lá. O que eu percebia era que se sentiam portadores de verdades inegáveis e qualificados pra conduzir as massas, apesar de não falarem a língua popular, de não se sentirem à vontade entre periféricos, de se isolarem em seus grupos. Entre as correntes eu ia em festas, encontros, assembléias, congressos, muitas vezes expondo na entrada, entre barraquinhas de comidas e de material das entidades envolvidas. As conversas eram sempre boas no meu trabalho, sem problemas, até porque eu não tinha nenhuma corrente de pensamento pra defender. E no trampo, tinha coisas em comum com todo mundo por ali.
De 89 a 92 morei em Minas, por perto de Belorizonte. Eu ainda acompanhava os movimentos sindicais, cada vez menos. Em 89 eu tive encomendas de diversos trabalhos na campanha eleitoral, da CUT e dos sete partidos da coligação. Eu continuava “desfiliado” e com liberdade pra me mover entre eles, ignorando suas diferenças ideológicas. PT, PDT, PCB, PC do B, PSB, PV e PH (partido humanista, nem sei se existe ainda), lembro até hoje. Vi a campanha acontecendo, tinha amigos de diversas “tendências” que me sabiam “de fora” e também que era confiável. Ali eu ouvi e aprendi muitas coisas do que acontece nos bastidores, em mesas de bares de tradição revolucionária. Do meu ponto de vista, os bons estavam perdendo espaço nos cargos de mando, era a DS (democracia socialista) e a Articulação. Naquela eleição, resolvi que não votaria mais. Ainda freqüentei alguns sindicatos em seus eventos, dos professores, dos bancários, dos jornalistas, mas a simpatia não era mais farta. Quando saí de Beagá, já não lembrava mais de procurar eventos sindicais. Parei com esse meio que tava deteriorando.
Várias eleições presidenciais depois, a articulação tinha virado Campo Majoritário e a DS tinha começado a se pulverizar em "correntes" de onde brotariam pouco depois vários partidos “mais à esquerda”, PSol, PSTU, PCO e outros. Aí eu já não procurava mais os sindicatos. Morava na montanha, no meio do mato, vinha pras cidades pra expor e vender, às vezes, e comprar material de trabalho. Numa dessas, em São Paulo, eu passava pela Paranapiacaba, onde encontrava ferramentas, e descia a ladeira do São Bento pra chegar na Casa da Bóia, onde comprava chapas e arames de latão e alpaca. De repente vi o símbolo da CUT, "sede nacional", na porta de um prédio chique, entre logotipos de grandes empresas. Fiquei curioso. Lembrei dos pequenos diretórios lá no passado, senti que veria a continuação daquela antiga disposição de “mudar as coisas” e entrei. Na portaria, roletas, câmeras e seguranças. Pediram meus documentos, apalparam a banca, revistaram o violão, passaram minha mochila num raio X. Fizeram abrir e olharam tudo, viram que os metais eram ferramentas e material de trabalho, me deixaram passar. Eu era um extra-terrestre no prédio, todo mundo becado, arrumado e eu largadão, de mochila, banca e violão pendurados nos ombros. No andar indicado, entrei pela porta com o símbolo, olhei em volta. Paredes de divisórias, um banco pra três pessoas vazio, nada nas paredes, nenhum cartaz, quadro, aviso, nada, ninguém. Num ângulo formado pela divisória, tinha um vidro com um buraco redondo no meio, tipo caixa de bar. Eu estava parado, lembrando dos murais interessantíssimos de outrora, quando uma pessoa veio pegar alguma coisa e me viu pelo vidro. O olhar desceu e subiu a minha figura. “O que que foi?” ”Nada não.” “Cê quer o quê?” Eu fiz um gesto vago, com o braço, “sei lá... queria ver os murais, os cartazes...” Ele fez cara de estranheza, mudou o tom de voz, “murais?” Deu um segundo, fez uma cara brava e levantou o queixo, impaciente. “Cê quer falar com quem?” Dei um silêncio também, caminhei pra perto do vidro, olhando bem nos olhos do sujeito. “Com ninguém não..." abaixei a cabeça até o buraco no vidro, o cara recuou um pouco e eu falei baixinho, com um sorriso triste, "eu já vi o que tinha que ver”. E saí pela porta, sem dizer mais nada. Desci o elevador com um nó na garganta e nojo daquele lugar luxuoso, perfumado, falso e poderoso. Cheguei na rua com sentimento de fim daquele mundo que um dia eu frequentei, únicos lugares institucionais onde ainda encontrava alguma identificação. Fechou o ciclo, acabou, apodreceu. Fui comprar os meus metais e cuidar da minha vida.