terça-feira, 22 de outubro de 2013

Uma em cima, outra em baixo - no fundo é a mesma coisa.

Cheguei em Foz do Iguaçu e fui recebido por Detrudes, Luiz e Rodrigo. Fomos ao hotel onde me hospedaria e a umas cervejas, na seqüência. Eles foram receber outros palestrantes depois, eu fiquei no hotel, completando o serviço com o frigobar. No dia seguinte fomos às cataratas, impressionante volume de água, impressionante estrondo - mas tive ali a mesma sensação que me provocam o Corcovado e o Pão de Açúcar, tomados por interesses empresariais que impregnam a sociedade de todas as formas, com a elitização da área. Ali se apaga a sociedade onde vivemos, como é característica das áreas elitizadas, se apossando das belezas naturais, e se esquece a precariedade em que são atiradas imensas parcelas da população, inclusive os que se incumbem dos trabalhos do parque. Tudo parece armado em nome da grana, excluindo e ignorando os grandes desequilíbrios humanos, a pobreza material da maioria e a pobreza espiritual da nossa coletividade. Isso me incomoda bastante e não permitiu que eu usufruísse plenamente das belezas naturais, consciente de sua "exclusivização". A comida do almoço era ótima, mas a ostentação do restaurante sempre me estraga o sentimento. Ao menos as companhias eram ótimas.

Não pretendo aqui reclamar de nada, nem responsabilizar quem quer que seja, a recepção e o tratamento foram exemplares, não podia ser melhor. Boas pessoas que se percebe pelo olhar, faziam parte da equipe do TEDxAvCataratas, desde o Sebastian, que estava na cabeça da organização, até os meninos e meninas da base, recebendo, preparando, fazendo o evento acontecer em harmonia. Os palestrantes, todos, evidenciavam um bom coração; as palestras foram ótimas, todas indutivas à reflexão, ao questionamento de valores como se faz necessário desde sempre, mas que é tão raro, desestimulado pelo sistema vigente. Me parece, porém, que eu era o único periférico da área, com vivência de rua, de carência, de marginalidade e exclusão - se não na origem, a partir dos dezenove anos e até hoje, com quase 53 anos. Os primeiros dezenove anos da minha vida me deram condições próprias de interpretar a realidade do ponto de vista da miséria material. Daí portar algumas visões diferentes dos outros palestrantes, algumas vivências não experimentadas ali - embora não faltassem vivências fortes, profundas e modificadoras, como se vê pelas palestras feitas. Em minha cabeça e coração, a maioria sabotada, explorada e excluída dos benefícios das tecnologias jamais desaparece, eu a vejo toda hora, em todas as partes, mesmo na sua invisibilidade. As mãos pobres estão nas paredes, nas poltronas, nas cortinas, na limpeza, na comida de alto nível que comemos, nas roupas e sapatos à minha volta, nos equipamentos, no asfalto, na calçada, em toda parte eu vejo. E me incomoda ver como isso é esquecido, ou não percebido. Parece que tudo foi feito automaticamente, não é fruto de injustiças sociais. Não consigo nem quero esquecer o suor, o esforço, a exploração dos que construíram todos os espaços, desde os públicos até os privados, desde os simples até os luxuosos. A base de tudo em nossa sociedade primária é a exploração do trabalho dos mais pobres, mantidos desonestamente na ignorância, na desinformação, na exclusão, na inferioridade social. E isso me dói, quando vejo explícito.

Sem querer ferir susceptibilidades, restringi a palestra às minhas vivências, aproveitando o escasso tempo. Não me parece produtivo levantar barreiras acenando com responsabilidades não percebidas, usufrutos indevidos e excessivos. Cobranças e acusações são prejudiciais, diante da naturalidade da inconsciência, quando se pretende apresentar reflexões e vê-las recebidas. Com carinho e afeto se é sempre bem recebido; com arrogância apenas se levantam antagonismos e mal estar. Uma tendência comum e imbecil.

Além do mais, meus pontos de vista são meus e não me sinto no direito de impor a outros.

Abaixo, a palestra, curtíssima, como é o padrão do TED.



À noite, depois da palestra, fomos a um bar no lado argentino. Por coincidência, de dois brasileiros. Um desenho meu ficou lá, na parede, o da América Latina, "pela integração dos povos latinoamericanos". Chamou minha atenção não ter visto nenhum carro de polícia pelas ruas cheias de casas noturnas. Só vi na fronteira. Ali tive que mostrar a identidade pra moça do computador.

Saí do hotel no dia seguinte e fui pra Cidade Nova, pra casa do meu camarada Mano Zeu, lutador incansável das periferias de onde é originário, com suas letras ácidas e esclarecedoras, em protesto permanente contra as falcatruas do poder vigente e a inconsciência em que são mantidas as favelas e bairros pobres. Ali não se espera pelos poderes ditos "públicos", se parte pra fazer e se faz. Do cinco estrelas ao barraco foi uma trajetória - parecerá estranho a alguns - ascendente. Se não em matéria, mas em alma, em comportamentos espontâneos sem formalidade alguma. Ali ninguém diz "pois não, senhor", nem usa qualquer tipo de formalidade chique, como no hotel onde estava. Não vai aqui nenhuma reclamação, nenhuma condenação aos costumes formais dos "altos" da sociedade. Apenas revelo muito mais identificação com a simplicidade, com o mínimo necessário, com as condições dos de baixo, resistentes da sobrevivência contra todo o esquema montado desde séculos - benefícios pra poucos, sacrifícios pra maioria. As condições favorecem a aproximação e a solidariedade.

Encontrei o Danilo Georges, também, logo na seqüência. Na casa do Zeu, com três colchões dormimos em seis, um argentino, um venezuelano, um colombiano, um pernambucano e o próprio Zeu. E eu, claro.

No dia seguinte, almoço na casa do Zé, muita preparação no CNI (Cidade Nova Informa), a biblioteca pau pra toda obra que eles conseguiram montar lá, cobrando de deus e o mundo na prefeitura, até conseguir, com as migalhas e as doações, colocar pra funcionar. É o centro cultural da área. Heróico. Assim como heróicas as pessoas que se dedicam a levar adiante, como diz o nome do próprio fanzine deles, o "Adelante". Trouxe dois deles, vou restaurar a capa de um e reproduzir.

Biblioteca comunitária Cidade Nova Informa.

Teve rep (ritmo e poesia), teve apresentações teatrais das crianças, muita manifestação de opiniões, baita exercício de formação de pontos de vista. No abandono cultural, se faz a cultura espontânea e local, abrindo a mente pro mundo, tentando descondicionar da midiatização dominante, mostrando outras existências fora dos padrões impostos.

Falei dos sentimentos induzidos, superficiais e falsos, com base na forma e não no conteúdo, disse da realização real e da falsidade das propostas convencionais. De enxergar o que está por trás do que nos é mostrado, de criar nossos próprios valores e comportamentos, de ver o que acontece e como se distorce a realidade pra que não vejamos o predomínio empresarial sobre o poder público, a verdadeira guerra das empresas contra os povos. De perceber nosso próprio valor e não nos deixar impressionar com as imposições culturais de mídia, que inferioriza quem tem menos e superioriza quem tem mais. Falei da maior importância do ser, em lugar do ter. Não faz sentido uma sociedade que maltrata alguém honesto, generoso, solidário e maltrapilho; e que louva os podres de ricos que compram políticos e se apropriam do patrimônio público, em prejuízo de milhões que não têm nem os seus direitos básicos respeitados. É preciso destoar desse conjunto, ainda que ao preço da discriminação.

Ali não houve como gravar a palestra, mas penso que o que falei ali é pra ficar por ali, mesmo. Muitos dos que não conhecem essa realidade cotidiana não entenderiam várias colocações que fiz. Percebi me observando que meu vocabulário, meu pensamento e meu sentimento fazem uma adaptação inconsciente. Da palestra no TED à fala no CNI houve uma mudança total. Nada premeditado ou resolvido, ao contrário, eu não sabia o que iria falar até pegar no microfone.

A Elza, com o microfone na mão, tem uma fala guerreira.
Na região da tríplice fronteira existe, entre os de baixo na sociedade, um sentimento de integração que me surpreendeu. Paraguaios, argentinos e brasileiros pobres se respeitam e se irmanam em dificuldades e lutas semelhantes.

Estive expondo na UNILA (Universidade pela Integração Latinoamericana), quer dizer, na rua em frente.  O que me valeu um contato com a segurança de uma empresa vizinha. É que eu havia pregado meus desenhos na parede da tal empresa e os caras vieram me dizer que não podia. O episódio vale um escrito à parte. Uma pequena historinha de fazer pensar. Deve ser a próxima postagem.



8 comentários:

  1. Eduardo, sempre que leio o que escreve e, principalmente, quando vejo você falar, sinto maior conexão entre nossos "eus"! Continue forma, rapaz; não se deixe vencer por nada, absolutamente nada, nem pelo cansaço de ver quão poucos, ainda, estão interessados em ouvir e refletir ou, ler e refletir. Esse tipo de "semeadura" é feita em público mas, somente no particular é que as pessoas vão entender - se assim o quiserem - quão maravilhosas são, essas sementes! Um grande abraço de LUZ, pra você!

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  2. Você se arrepende de algo em sua vida?

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    1. Sei lá, cumpade, devo me arrepender. Mas nada de básico, nada no fundamental.

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  3. Uma em cima, outra em baixo - no fundo é a mesma coisa.

    Porque ?

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  4. Mesmo se parece obvio, o obvio so pode ser entendido por quem ESCOLHE a vida e nao a morte. Me emocionou saber que nao falo sozinho.... A liberdade se conquista.... de dentro para fora. Prazer em conhecê-lo.

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  5. Valeu Edu, sempre vale. Oxalá venha para Sampa pra uma "palestra", ou seria apenas mais um dia?

    Abração

    Oliver

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