quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

"feliz" natal...

Os povos nórdicos não conseguiam acreditar num deus que se deixou matar por um bando de soldados na cruz da humilhação romana. O império ganhou as guerras, os territórios, os romanos venceram os guerreiros e seus líderes foram submetidos e convertidos à fé cristã, a religião do império. Mas o povo continuava com seus deuses e deusas guerreiros, comemoravam no dia do solstício, 25 de dezembro, a fertilidade dos campos, ao mesmo tempo em que pediam e ritualizavam por nova fertilidade na próxima colheita. As atividades varavam a noite, em cultos pagãos, sacrifícios e sexo ritual, pra horror dos padres. Patrulhas foram enviadas pra acabar com aquilo, sem muito sucesso, em algumas ocasiões houve levantes e patrulhas foram destroçadas pela fúria da multidão. Era preciso outra estratégia. Depois de muita discussão, muito pensar, ficou decretado que naquele dia seria comemorado o nascimento de Jesus, a festa máxima da cristandade - que até então se confundia com a páscoa dos judeus e marcava a "paixão e morte". Os líderes locais foram instruídos a abrir os seus castelos, oferecer presentes e comida e bebida ao povo, armar presépios e exaltar a cristandade. Os mais antigos desconfiaram daquela novidade, mas os jovens viam a oportunidade de comer e beber à farta, dançar e ganhar presentes. E começou a enfraquecer a comemoração do solstício, da fertilidade. Com o tempo, ficaram só os mais velhos e mais preocupados em preservar sua tradição independente da influência romana. Poucos, foi fácil criminalizar, perseguir, prender, matar os seguidores dos deuses e deusas nórdicos, ainda mais que era tempo de inquisição, de acusações de bruxarias, pactos com o demônio, torturas e fogueiras.

Assim foi decretado o dia do nascimento de Jesus, nascido numa época em que o império não registrava o dia do nascimento das crianças, mas sim o ano. Quando nem o ano é consenso, como marcar o dia? Só levando em conta as razões. É uma festa socialmente cruel, injusta, exclusiva. O que se prega neste dia é o que deveria ser todos os dias. Não é a afirmação de um dia, é a negação de todo o tempo. Ainda por cima, boçal. Reconheço, óbvio, a existência de pessoas de boa vontade, realmente comovidas com esta data. Mas isso não a justifica.

Abaixo, um texto que já compartilhei duas vezes. É de ocasião, merece uma terceira investida.


"Estimado Santa Claus, Papai Noel, Bom Velhinho,
ou como queira chamar-se ou ser chamado.

Confesso que sempre lhe tive simpatia porque, em geral, me agrada a Escandinávia, sua roupa vermelha me dá um sentimento premonitório e porque, por trás dessas barbas sempre acreditei reconhecer um filósofo alemão que, a cada dia, tem mais razão no que afirmou, em vários livros muito citados, mas pouco lidos.

Não tema pelo teor desta carta, não sou o menino chileno que, há muitos anos lhe escreveu: “Velho safado, no ano passado te escrevi contando que, apesar de ir descalço e em jejum à escola, consegui tirar as melhores notas e que o único presente querido era uma bicicleta, sem querer que seja nova. Não teria que ser uma mountain bike, nem para correr o Tour de France. Queria uma bicicleta simples, sem marchas, para ajudar minha mãe na condução das roupas que ela busca, lava, passa e entrega. Isso era tudo, uma humilde bicicleta. Mas chegou o natal e eu ganhei uma estúpida corneta de plástico, brinquedo que guardei e te envio com esta carta, para que enfies no cu. Desejo que pegues AIDS, velho filho da puta”.

Foram seus elfos, os responsáveis por tão monstruoso desrespeito? Pois bem, estimado Santa Claus, seguramente este ano receberá muitos pedidos de bicicletas, pois o único porvir que espera os meninos do mundo é como entregadores, mensageiros e trabalhos sem contrato de trabalho, condenados a distribuir pacotes e quinquilharias até os 67 anos de idade. No entanto, não lhe peço uma bicicleta. Peço, em troca, um esforço pedagógico, que ponha seus elfos, anões, duendes e renas para escrever milhões de cartas explicando o que são e onde estão os mercados.

Como você bem sabe, eles nos têm fodido a vida, rebaixado os salários, arrasado as pensões, retirado benefícios das aposentadorias e condenado as pessoas a trabalhar permanentemente, para tranqüilizar os mercados.

Os mercados têm nomes e rostos de pessoas. São um grupo integrado por menos de um por cento da humanidade, donos de 99% das riquezas. Os mercados são os integrantes dos conselhos de acionistas, como são acionistas, por exemplo, de um laboratório que se nega a renunciar aos royalties de uma série de medicamentos que, se fossem genéricos, salvariam milhões de vidas. Não o fazem porque essas vidas não são rentáveis. Mas a morte sim, é, e muito.

Os mercados são os acionistas das indústrias que engarrafam suco de laranja e que esperaram até que a União Européia anunciasse leis restritivas para os trabalhadores não comunitários, que serão obrigados a trabalhar na Espanha ou outro país da U.E., sob as regras de trabalho e condições salariais de seus países de origem. Logo que isto aconteceu, nas bolsas européias dispararam os preços da próxima colheita de laranja. Para os mercados, para todos e cada um destes acionistas, a justiça social não é rentável, mas a escravidão sim, e muito.

Os mercados são os acionistas de um banco que suspende o salário mínimo de uma mulher que tem o filho inválido. Para todos e cada um dos acionistas, gerentes e diretores dos departamentos, as razões humanitárias não são rentáveis. Mas os despojos, as expulsões da pobreza para a miséria sim, é. E muito. E para os ladrões de esperança, sejam de direita ou de direita – pois não há outra opção para os defensores do sistema responsável pela crise causada pelos mesmos mercados –, despojar da sua casa aquela senhora idosa foi um sinal para tranqüilizar os mercados.

Na Inglaterra, a alta criminosa das tarifas universitárias se fez para tranqüilizar os mercados. O descontentamento social levará a ações inevitáveis pela sobrevivência e os mercados pedirão sangue, mortes, para tranqüilizar seu apetite insaciável.

Que seus duendes e elfos expliquem, detalhadamente, que no meio desta crise econômica gerada pela voracidade especulativa dos mercados – e pela renúncia do Estado a controlar os vai-véns financeiros –, nenhum banco deixou de ganhar, nenhuma sociedade multinacional deixou de lucrar e até os economistas mais ortodoxos das teorias de mercado concordam em que o principal sintoma da crise é que os bancos e as empresas multinacionais lucram menos mas, em nenhum caso deixam de lucrar. Que os elfos e duendes expliquem até ficar claro que foi o mercado quem se opôs a (e conseguiu eliminar, financiando campanhas de legisladores a seu serviço - n do T) qualquer controle estatal às especulações, mas agora impõem que o Estado castigue os cidadãos com a diminuição dos seus rendimentos.

E, por último, permita-me pedir-lhe algo mais: milhares, milhões de bandeiras de combate, barricadas fortes, paralelepípedos maciços, máscaras anti-gases, e que a estrela de Belém se transforme numa série de cometas incandescentes com alvos fixos: as Bolsas, que queimem até os alicerces, pois as chamas dos formosos incêndios nos dariam, ainda que temporariamente, uma inesquecível Noite de Paz.

Muito fraternalmente,"


Luís Sepúlveda

Fuente: Le Monde Diplomatique                                            
Tradução - Eduardo Marinho


13 comentários:

  1. Muito bom o texto. Tenho sentimento parecido. Aliás, toda data, para mim, não diz muita coisa. O homem deixa a sua marca no dia a dia e não precisa de um dia específico para isso. O que dizer de uma data que se pretende universal, marcada pelo consumo desenfreado num mundo onde seres humanos estão fora justamente dessa "festa do consumo"? Onde votos de amor e paz, entram como coadjuvantes...Na minha família não há natal há um tempo; somos poucos. Não temos tb essa cultura dos presentes, nem nos aniversários, apenas nos reunimos ,mas sem tradição. Tb não ligamos para ano novo. Vejam em que loucura se transformou o mundo: antes fazíamos votos de feliz ano novo, agora, vaidosos e egocentrados exaltamos na rede social o quão grande foi o nosso ano velho. Essa é uma data onde, geralmente, aqueles que passaram 364 dias voando, alucinados e centrados no umbigo (mas sem sequer olhar para dentro de si mesmo), param para fazer uma reflexão e resoluções que duram no máximo até o primeiro fim de semana do novo ano. Mas, embora pense assim., aprendi ( e que bom que estamos sempre podendo aprender) que essas são as datas que o mundo em que eu vivo resolveu marcar, que a humanidade escolheu para parar e celebrar. Posso não concordar e até me ausentar, mas aprendi a respeitar a desejar um dia de paz, fraternidade, harmonia com a família. As pessoas me desejam tb, me convidam pra passar em suas casas, as vzs eu vou, no dia seguinte almoço com os meus pais, tb as vezes. Enfim, acho que a generosidade, a 'baixada de bola" tb é uma das manifestações da consciência. Vejo o ego se manifestando de formas muito sutis, e já me peguei fazendo movimentos de repulsão com o meu jeito, sem nem me dar conta, era o ego agindo...Quero estar aprendendo. Momentos como o dia de hoje, o natal, onde a angústia misturada a outros sentimentos bate sem pedir licença, é uma grande oportunidade para sentir o mundo, as pessoas próximas, a mim mesmo, enfim...pra eu aprender alguma coisa, mesmo que isso não me diga respeito. No fundo , no fundo, nada diferente de um dia como outro qualquer.

    um grande abraço!

    Adilson

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  2. Alienado! As drogas devem estar comendo sua mente. Vai ser feliz cara, vai curtir sua família, seus filhos e deixar de querer pregar o dono da razão. O burguês que largou tudo para virar pobrezinho vendendo artesanato, ahhh vai procurar o que fazer. Será que as razões foram realmente as apresentadas? Alguém já procurou a família deste indivíduo para saber a outra versão? Falar até meu papagaio fala!!!

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    1. Desculpem todos q não merecem ler este tipo de grosseria. Mas você senhor Carlos, é um puta de um merda. Se te julgas mais inteligente, mais capacitado, e entende melhor como "curtir a vida", porque não usa de todo esse teu poder para engrandecer a discussão, ao invés de fazer acusações vazias e sem provas? Na boa. Vc fala pra ele procurar oq fazer e está aqui no blog de um cara q vc aparentemente não gosta para falar besteira.. Vá procurar oq fazer você, seu troxa!

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    2. Que pena! Baixar assim, o nível só pode ser coisa de extremista radical de direita ou próprio de quem queria fazer ou dizer o mesmo e não teve/tem CORAGEM SUFICIENTE!

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  3. Belo texto e pensamentos, Eduardo Alves!
    Sou socialmente desajustado. A data de hoje representa para mim, somente, um dia em que todos tem um tempo sobrando para ver os amigos, para reunir a família. Mas isso não trás nada de proveitoso com o mundo, com a caridade aos necessitados, que são as vítimas do que muitos querem e sentem orgulho em seguir, esse sistema de mentiras e alienação maquinal. O Carlos que a pouco nos deu o ar da graça, é só mais um do tipo que conhecemos bem na nossa caminhada por aqui, cercados lá fora de tamanha ignorância, que não querem pensar porque já se acostumaram a entender que isso é perda de tempo, que não quer ser dono da própria razão, em si e talvez, também não saiba enfim, o significado da palavra "alienado". Eu, pelo meu lado e modo de ver, considero o dia de hoje como um dia comum e que serve para o que disse acima. Sobre a paz que todos proclamam, não tenho nada a dizer por saber que é apenas, mais uma armação em que as pessoas do mundo adoram participar, fazer parte, peças da engrenagem sentindo-se felizes e achando que sabem o que desejam, e que estão desejando o bem... Tudo são significados. Não adianta falarmos de pobreza, quando fugimos dela, quando aprendemos das diversas formas que "eles" nos propagam desde nosso nascimento, desde o nascimento de nosso pais e avós e por aí foi, ou veio...que sua felicidade é justamente o oposto do "ser pobre". O significado de tudo é mesmo o medo, mas é necessário outra coisa, para conseguir identificá-lo. E isso, consegue-se nos dias de hoje com muita dificuldade, pois necessita de isolamento social, significa ver tudo de outra forma, mais clara, para perder o medo e a sensação de proteção que a sociedade atual tenta nos impor, e ela nos dá os dois, medos e sensações. E olha que todos nos irão ver como loucos, mas qual loucura é maior?

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  4. Cont.> A data de hoje é a representação máxima da nosso ignorância e falta de visão. Passamos a data como qualquer outra, uns mais bêbados e preocupados com as faturas de cartão de crédito ou com as milhares de contas a pagar, enquantos outros, importando-se com o que vestirão no almoço ou na dieta que será cruel após devorarem a farta mesa, perguntando-se, se a pessoa que recebeu o seu presente, que tanto procurou e se acotovelou nos diversos shoppings ou na 25 de Março, irá gostar... Épocas do tipo são, realmente (e isso não é ilusão de drogado, Senhor Carlos), as maiores festas consumistas em que os maiores empresários e patrões, riem a toa e bebem do nosso sangue e tempo perdido, a cada centavo seu, um segundo de sua vida, para manter tudo da forma como é, para não se preocupar com o consumismo que os impõem, fazendo da nossa sociedade a única já existente aqui na terra, a conseguir acabar com qualquer forma de vida futura, por milhões ou bilhões de anos... De uma era perdida pra sempre e tudo isso, para lhe dar matéria. Veja a sociedade que deixamos no alto, ela nos dá, ela nos tira. Toda matéria que você procura, é tirada de certa forma da nossa natureza... É o que gera a poluição do ar que respira, desmatamentos e águas e rios podres, porque (surpresa, Carlos!), tudo o que você compra e consome, que gera procura e demanda, deve ser fabricado! Veja só, meu caro... A justa data em que você comemora e venera seu Deus, irá aniquilar o belíssimo futuro do próximo que você pensa estar desejando, incluindo o ar que o seu filho e família irá respirar, incluindo toda a porcaria que te ilude e te faz acreditar que está indo para lado certo, correto. Mas tudo bem, porque você nem quer ser dono ou saber de uma razão que seja prudente e benéfica.

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  5. Cont > Falo de mim, todo dia tento fazer o que vejo como melhoria, mas a sociedade sempre haverá de exigir algo, porque eu estou aqui e porque todos os meus, também estão. Tentaram me fazer acreditar que subir de status é o meu dever e futuro. Como disse, hoje é somente uma data em que eu e os meus, conseguimos folgas de seus trabalhos...mas ainda assim, nunca tiram folgas dos problemas que pensam ser razão para tal felicidade de data comemorativa. Conseguiremos lidar com isso pelo resto de nossas existências?

    Abraço, Eduardo e desculpe-me por encher a tua página dessa forma, é só que me deu o que pensar e está, acredito, seja a intenção...

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  6. Nossa, um post sobre o Natal e vem gente desancar... mas não vamos dar atenção ao que não merece. Vou, tardiamente, comentar o texto, como uma dessas pessoas de boa vontade que se comove com a data, rsrs. Não a data do papai noel, ignóbil invenção da Coca-cola que dizem ser inspirada em São Nicolau, mas não é :) Não, o Natal pra mim é o do Cristo que eu aprendi (mesmo ele sendo uma invenção, uma produção subjetiva) a admirar: o cara do amor, do perdão, do enfrentamento pacífico aos poderosos, o cabeludo que andava com proscritos e defendia prostitutas. A família se reúne, reza, comemora, bebemora, e nesse ultimo ano dividimos a ceia com um morador de rua que se instalara na frente da casa da minha irmã, onde foi a festa. Enfim, não respeito a festa consumista do capitalismo, mas respeito a memória - inventada, claro, mas nem por isso inválida - do Cristo-amor.

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  7. Tô pensando seriamente em usar esta carta no próximo natal. Apadrinhar um pobre coitado e contar o que me querem tanto. Afinal o virtuosismo se compra e todos o compram pra uma descarga de consciência, uma sessão descarrego. Não queria acreditar no espírito natalino, mas com tantas ações de misericórdia, acho que esta tão insignificante data pode ser sim o que a mídia quer, o que o mercado quer, o que as grandes empresas querem. Até parece que estou 'p'odendo com o mundo. A verdade ser dita? Uma vitória. Mas talvez mesmo sábios voltemos a tirar proveito. Elucidados, ainda amordaçados, vamos lustrar a máquina de maquiar. Estamos vivendo-o e o engolindo sempre. Feliz Natal para 2016.

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    1. Cê que trocou comigo champanhe por um desenho? Fiquei na dúvida se te dei um fanzine, o Pençá, de lambuja. Bem que merecia...

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