Década de 80.
A última carona havia me deixado a alguns quilômetros de distância da cidade, segui pela estrada, que vinha de Ponte Nova e chegava em Viçosa, andando pelo acostamento. Levava mochila, banca pendurada no ombro (mesa desmontável, portátil, numa perna de calça costurada, com uma alça) e o painel de trampo (brochinhos, brincos, alguns colares e pulseiras). Vinha de bermuda, chapéu de feltro, sandálias havaianas, cabelo comprido e barba rala. Depois de uma grande curva à direita, a pista descia quinhentos metros e terminava numa rua calçada com paralelepípedo. Terminava mesmo, em T, e já era o centro da cidade. Viçosa era muito pequena, naquela época.
Do outro lado da rua, num posto de combustíveis, tinha uma fila de carros esperando e se estendendo até fora, junto à calçada. Carros novos, bonitos, grandes, brilhantes. Eu caminhava descendo pela estrada, de frente pra cena. Na calçada havia um latão de lixo, perto da entrada, junto a um poste. Mergulhada nele, com as pernas de fora, uma criança catava latinhas de alumínio. Apoiada na beira do tonel pelas dobras das pernas, o corpo sumia lá dentro. O vestido virado deixava à mostra a calcinha muito branca, contrastando com o preto das pernas, as latinhas apareciam pela borda e caíam no chão, mal se viam as mãozinhas que jogavam e voltavam ao fundo pra buscar mais. Junto ao tonel, uma outra criança menor, também preta e menina, juntava as latinhas que caíam, com os pés. Não devia ter mais de quatro anos. Ela segurava um saco plástico pequeno nas mãos e, no chão, havia um saco maior e mais grosso, com um volume enrolado dentro e uma pedra em cima.
Um dos motoristas estava em pé, fora do seu carro, e observava as crianças, impassível. Era um senhor de cabelo e bigode brancos, óculos de aro dourado, boné no estilo francês, bem vestido e fumando um cachimbo. Eu vinha caminhando, olhando, atravessei a estrada, cheguei do outro lado da rua e parei pra olhar a cena. Com tristeza, a diferença brutal e a indiferença das pessoas, como as situações de sobrevivência miserável que a parte "instruída" desta sociedade aceita acontecerem, "naturalmente". Constrangedor contraste entre privilegiados e abandonados sociais, quando eu foco nisso dá uma espécie de nó na garganta, os olhos ardem. Não fazia ali nenhum julgamento pessoal, era uma percepção coletiva, se há algo condenável é o modelo social como um todo. Viçosa é uma cidade universitária, imaginei que o cara era um antigo professor. Tinha jeito, cara, idade e pose pra isso. As pessoas se acostumam com a miséria, entre os abastados é até recomendável, é como parte da paisagem, apenas "lamentável", mas "inevitável". Esses pensamentos, acompanhados de uns anti-depressivos, acalmam a consciência e anestesiam os sentimentos de solidariedade social.
As latinhas foram escasseando, de repente as perninhas fizeram um movimento rápido pra baixo e o tronco da menina surgiu, se erguendo de dentro do latão ainda com uma latinha em cada mão, e ela caiu fora, em pé na calçada. Pensei em oito anos, o vestido branco, sapatos brancos, cabelo puxado pra trás e um coque no alto da cabeça, bem amarrado com uma fita também branca. Dava pra ver que eram meninas de família, bem cuidadas, apenas muito pobres. Não olhou pra ninguém, abaixou, pegou a pedra, abriu o saco plástico e foi pegando cada latinha no chão, batendo pra amassar e jogando no saco. A menor ajudava empurrando com os pés as latas que estavam mais longe, olhava pra maior e a maior não olhava em volta, concentrada no que fazia. A fila dos carros andou e o professor voltou pro seu carro. Motores foram ligados, movimentos foram feitos, sem que ela nem uma vez olhasse. Terminou, enrolou a boca do saco, envolveu nela a pedra, segurou e estendeu a outra mão. A pequena agarrou na hora, saíram andando ao longo da entrada do posto e seguiram pela calçada. A grandinha olhava em frente, a menor olhava pra trás, pros lados, pras pessoas, pros carros, pra tudo, na curiosidade irresistível das crianças mais pequenas, enquanto andava quase correndo pra acompanhar os passos da irmã que, de cabeça erguida, seguia seu caminho e puxava pela mão. Num momento a menorzinha olhou pra mim, do outro lado da rua. Tropeçou, olhou pro chão, se equilibrou e voltou a me olhar, de olhos bem abertos, sempre agarrada na mãozinha da irmã. Eu era diferente do que ela estava acostumada, carregado de coisas, caminhando quase paralelo a elas, um pouco atrás. Sorri e acenei pra ela, que sorriu encabulada e olhou pra frente sorrindo.
Eu ia na mesma direção, fui pelo outro lado da rua mesmo. Tinha pensado em fazer um contato, mas achei que ia incomodar com meu "ser estranho", além de ter percebido na dignidade da mais velha o desejo de não fazer contato, de passar despercebida, como é comum entre os desprezados. É preciso respeitar. Acompanhei de longe até que elas entraram numa esquina e foram em direção a uma área sem calçamento. Quando iam virar a menorzinha me olhou de novo, sorri e acenei outra vez. Aí ela sorriu e acenou com a mãozinha. Eu segui em frente e fui expor na universidade.
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Passei alguns dias em Viçosa. Estava numa das separações do meu primeiro casamento e a saudade das crianças maltratava demais. Isso me deixava inquieto, beberrão, conversador, topador de qualquer parada. Precisava estar em movimento, mudar de lugares e de gentes, de ambientes, climas e relevos, andar na estrada pra ficar sozinho e refletir na vida, andar na cidade pra esquecer da vida, pra anestesiar os sentimentos. Ou ao contrário, encontrar sinais e toques que precisava encontrar, trazidos pelos acasos da vida, pelas coincidências inexplicáveis. Precisava manguear, expor, trampar, conversar, beber, me entorpecer, esquecer, lembrar, pensar, me isolar e me misturar, alternando meio sem controle. Viçosa já tinha dado o que podia, queria ir embora.
Estive abrigado em várias repúblicas de estudantes, nesse dia arrumei minhas coisas quando acordei e saí carregando tudo. "Hoje não vou dormir em Viçosa", avisei. Expus na universidade de dia, mangueei nos bares da noite, parei pra beber e a madrugada chegou. "Vou quando amanhecer o dia". Eram umas quatro da manhã e eu ainda estava bebendo, sentado numa mesa de um bar, quando vi passarem duas locomotivas, bem devagar e em frente ao bar, puxando uma dessas intermináveis composições de vagões. Eu sabia dos trilhos, mas não tinha visto passar nenhum trem até ali. "Ele passa sempre às quatro e quinze da manhã", me disseram. Eu estava bêbado, não lembrava o quanto havia bebido, entre cervejas, conhaques e cachaças e fiquei olhando os vagões. "Tá carregando o quê, essa porra?" "Sei lá" foi a resposta. "E tu sabe pra onde tá indo?" "Sei, pra Ubá". Ubá? É pra lá que eu vou. Levantei, fui colocando a mochila enquanto pedia a um dos garçons, "vê a conta rapidinho aí, cumpade!" Já estava com o equipamento completo, mochila, banca e painel, quando o cara trouxe. Os vagões continuavam passando lentamente, eu cuidava pra ver se a fila de vagões não vinha terminando. Paguei e fui na direção do trem. Tive a impressão que a velocidade aumentava, disse "parece que tá mais rápido", em dúvida se não era impressão por estar bêbado, e alguém falou "quando chega fora da cidade a velocidade aumenta". Me apressei, esperei passar a escadinha que tem no fim de cada vagão e, com uma corridinha e um impulso, me agarrei nela. Estava mais rápido, mas deu pra agarrar, com apenas uma das mãos - a outra segurava o painel - e os pés nos degraus.
Cambaleei pra frente e pra trás, me esforçando pra me equilibrar. A subida foi difícil, com peso e uma única mão pra segurar e trocar de degraus. Quase caí várias vezes, fui subindo com dificuldade, aos poucos, o trem aumentando mais a velocidade, saindo da cidade e entrando no breu da escuridão. Com muito esforço, cheguei à borda do vagão, senti que não conseguiria levantar as pernas pra passar e, com uma cambalhota dolorosa, desabei lá dentro. Eram pedras de carvão mineral. Fiquei um tempo me recuperando do esforço e da pancada, sem conseguir pensar direito. Arrumei de alguma forma as pedras, fazendo uma espécie de berço, joguei a mochila por cima e deitei de costas sobre ela. Apaguei em pouco tempo, com o ruído do trem e o vento fresco.
Acordei suando, queimando com o sol alto, o trem de novo andava devagar, fui acordado pelo apito. A ressaca pesava minha cabeça, estava também ressecado pelo sol, a dor atrás dos olhos era de matar, o corpo todo doía. Eu espremia os olhos com a claridade, virei de costas pro sol rolando sobre as pedras, a cabeça latejando. "Deve ser Ubá". Apoiei as duas mãos e os dois pés e ergui o corpo de forma a colocar a cabeça acima da borda e olhar onde estava. A velocidade era mínima. Olhei e conseguir ler Ubá-MG numa parede. Quase ao mesmo tempo, ouvi gritos e alguém soprou um apito. O trem estacou nesse instante e eu caí de costas sobre as pedras. "Ah, caralho, putaquilpariu!" Fechei os olhos, doía tudo.
Senti que era comigo, que devia sair logo dali, mas era tudo muito pesado, cabeça, braços, pernas, mochila... fui me aprumando, consegui colocar a mochila, cada movimento doía, a cabeça latejava, os olhos lacrimejavam, até os dedos doíam. Estiquei o braço na direção da banca, consegui segurar a alça quando ouvi "parado!" Fiquei imóvel, virei a cabeça devagar na direção do grito. O guarda me apontava uma pistola, por cima da borda, na escada do vagão da frente. "Pega essas merda e desce a escada!" Concordei com a cabeça, puxei a banca, peguei o painel e fui. No chão, bem na frente da escadinha, outro guarda me apontava outra pistola do mesmo tipo. "Desce devagar!" Eu não tinha outra maneira pra descer, tinha que ser devagar mesmo. Reparei no uniforme, Polícia Ferroviária Federal. Nem sabia que existia essa polícia. Bueno, digamos assim, estava conhecendo agora.
Fomos caminhando, passando trilhos, até a base deles, na estação, um do lado e outro atrás, os dois de armas na mão. Dentro era escuro, pra quem vinha do sol alto, mandaram sentar numa cadeira e começaram a perguntar, de onde vinha, como tinha entrado no trem, eu contava tudo, com a maior naturalidade, o trem passou na minha frente, eu esperava amanhecer pra pegar a estrada, ouvi que a composição ia pra Ubá, nem sabia que era proibido pegar carona num vagão. Eu passava mal, pedia água, ressecado. "Água é o cacete!" era a resposta. Eles pareciam não se conformar, queriam alguma coisa mais grave, mas não tinha. Gritavam. Eu não reagia, falava baixo, mesmo com eles gritando, mesmo sentindo as pancadas, dizia "precisa mesmo disso?" e olhava nos olhos deles. Acho que cansaram de mim, eu não era mesmo nenhuma ameaça. Não me deram água, por mais que eu pedisse. Eles saíram, conversaram, voltaram e ameaçaram, "da próxima vez, vai ficar aqui, na cela, e tem processo federal, sabia?" Eu não sabia, mas sabia que eles estavam prestes a me soltar, aquilo era só o epílogo. Continuei na mesma, calmo, com cara de enjôo, me sentindo meio morto, cabeça pesada, doendo, garganta seca, falando muito baixo. A senha de saída, afinal, "some daqui!" foi dita com a porta aberta, não precisei falar mais nada, peguei minhas coisas e saí pra luz ofuscante do sol de duas ou três da tarde.
Matei minha sede na torneira do jardim em frente à estação ferroviária. Depois andei um pouco pela cidade, encontrei uma obra abandonada, entrei e dormi até tarde da noite. Acordei com mais disposição, saí, tomei mais água e perambulei até achar um bar.