Não quis, não fui, não saí de casa. Foi todo mundo, fiquei
sozinho pra não atrapalhar ninguém. Não quero ouvir “feliz ano novo”, repetidas
vezes, com os jargões de sempre, todo ano, todo “fim de ciclo”, um monte de
gente pedindo mudanças pras entidades, sejam quais forem, mudanças que só podem
ser feitas por escolha própria, mudanças de valores, de atitudes, por
percepções de si mesmo seguidas de mudanças de sentimentos, de disposições, de
objetivos, de desejos, de comportamentos, de formas de ver o mundo, os
acontecimentos, as pessoas, as coisas, a vida. Mas não, espera-se que alguma
coisa faça o nosso serviço pessoal e intransferível. Dá-se pulinhos, queimam-se
velas, joga-se arroz, castanhas, ervilhas, lentilhas, usa-se branco, preto,
amarelo, laranja, vermelho, roxo, todos os rituais, todas as mandingas, todas
as ilusões. A esperança é que alguma interferência externa melhore as coisas,
traga dinheiro, facilite a vida. Os mesmos pedidos, repetidos ano a ano, as
mesmas confianças e convicções, esquecer o passado, agora é tudo novo.
Esquecer o passado é o maior risco de repetir velhos erros. E
se não há mudança interna, percebida, assumida, escolhida, decidida e posta em
prática, não há mudança nenhuma além das que o tempo impõe a tudo, no seu ritmo
e do seu jeito. Os desejos, os mesmos produzidos em laboratórios de pensamento
e implantados pelo massacre publicitário-ideológico. A cegueira é palpável,
sedutoramente imposta, quase voluntária. Feliz ano novo.
O ano que termina viu o desmonte de tudo o que fazia alguma
defesa do meio ambiente, das terras indígenas, da agricultura familiar e
orgânica, dos direitos humanos. As instituições foram ocupadas por mentalidades
destrutivas, rasas, ignorantes, truculentas, orgulhosas da sua truculência e
ostensivas da sua ignorância. A indústria nacional foi destruída enquanto o
teatro político-partidário encenava a farsa tragicômica dos desencontros,
chamando a atenção pra si, ocupando os holofotes da mídia empresarial, enquanto
nos bastidores, nas casas legislativas, no poder judiciário, rola a destruição
de todo pudor no saque, na anti-socialidade, na criação de miséria, desemprego
e criminalidade. Os horizontes estão cheios de nuvens escuras, carregadas, a
miséria aumenta, os desabrigados se multiplicam sem controle, o crack, as
drogas, anestesias no abandono, sendo consumidos à destruição, os cortes na
assistência social esmoleira cria mais abandono e sofrimento, a violência se
armando, as forças de segurança sendo treinadas e incitadas pra guerra, pro combate
“ao crime” nas favelas, periferias e bairros pobres, a pobreza crescente
gerando mão de obra pro crime organizado, mais e mais violência. As atrocidades
do Estado refletindo nas atrocidades cada vez mais sem limites do crime,
penitenciárias sendo construídas e lotadas, especializando a criminalidade,
formando as forças inimigas num conflito social sem fronteiras ou limites, onde
a população é o campo de batalha exposto a todas as barbaridades da guerra. E
os empresários do crime proliferam junto ao Estado, financiam campanhas
eleitorais, saem nas colunas sociais com suas obras beneméritas entre a
população roubada nos seus direitos constitucionais, humanos, básicos,
fundamentais. (Feliz ano novo...)
Os assassinos dos povos originários, entre madeireiros,
garimpeiros, mineradoras, empresas agrícolas, ricos criadores de gado,
plantadores de soja e outras monoculturas extensivas (as tais comódities) estão
atiçados, rosnando indóceis, incentivados pelo governo e pela retirada dos
órgãos de defesa tanto das terras indígenas, quanto do meio ambiente. Os
assassinatos voltam a recrudescer, como na colônia, quando matar os indígenas
era a regra. Foi até criado o dia do fogo, quando milhares de peões foram pagos,
municiados de combustível e enviados de moto na missão de criar focos de
incêndio, a tal ponto que escandalizou o mundo.
A viagem que temos
planejada pra começar em janeiro, passando por Tocantins e Maranhão, passa
pelas terras indígenas onde foi assassinada a quarta liderança em dois meses.
Vamos encontrar histórias aí, na certa. De dor e resistência, de ameaças,
ataques e sobrevivência. Estamos do lado socialmente mais fraco, humanamente
muito mais forte. E é essa a força que tentamos captar e passar adiante, na
busca de consciência e solidariedade social numa estrutura construída pra ser
egoísta e indiferente ao sofrimento das multidões injustiçadas pelos poderes
falsamente ditos públicos, pois seqüestrados e dominados pelos poderes
econômico-financeiros, exercido nos bastidores da farsa.
Foram liberados este ano mais de 200 venenos agrícolas com
nomes nojentamente falsificados como “defensivos”, alguns dos quais proibidos
nos países dos próprios fabricantes. Estamos sendo conduzidos ao câncer e
várias outras doenças, pelas químicas não só agrícolas, mas também da indústria
alimentícia, que só tem esse nome pela criminalidade social em que vivemos,
pois é responsável direta pelo adoecimento compulsivo da atualidade, entre
outros fatores também sociais como vida estressante, pressões de mercado,
insegurança no trabalho, paranóias e medos intensificados (e mesmo criados) no
massacre publicitário-ideológico exercido permanentemente pela mídia
empresarial.
O rio Doce continua produzindo doenças degenerativas pelos
metais pesados, nos oitocentos e cinqüenta quilômetros da maior bacia
hidrográfica da região sudeste brasileira, empesteado pelos rejeitos da
mineração que desceram com o rompimento da barragem de Fundão, ao sul do
município de Mariana, MG. O litoral de ES, BA, RJ, SP e PR já têm infestação
dos metais pesados lançados em Regência, foz do rio Doce, há quatro anos no
oceano Atlântico. Os poderes públicos são cúmplices das mineradoras, não à toa.
Elas financiam campanhas tanto eleitorais quanto publicitárias, apoiando e
sendo apoiadas em seus interesses dentro dos poderes municipais, estaduais e
federais, em prejuízo da nação, do meio ambiente e da população. Agora mais que
nunca. Médicos foram retirados de locais onde sua necessidade cresce em ritmo
alucinado. As águas de banhar, de beber, de cozinhar, de usar, no vale do rio
Doce, estão todas contaminadas de metais pesados, altamente cancerígenos. E não
se fala nada, o silêncio cúmplice das empresas de comunicação é o mesmo dos
poderes falsamente públicos, o escândalo, os crimes contra a população são
escondidos, jogados debaixo do tapete, com medidas ridículas, cênicas,
hipócritas, cheias de demagogia e perversidade. Os venenos da mineração que
devastaram Brumadinho, das mesmas empresas, contaminam agora o vale do São
Francisco, que é vital pelo sertão adentro, fonte única de água pra inúmeros
municípios. Dessa vez não é avassalador como o rio Doce, é mais sutil, menos
escancarado, está contaminando aos poucos e, por isso mesmo, está passando
“despercebido” pela mídia, pelo Estado, pelos que cometem crimes sociais
permanentemente contra a nação brasileira e sua população. Esta, a população
ribeirinha, irá adoecendo lentamente, gradativamente, sem ter ligadas as causas
do aumento de ocorrência de doenças degenerativas, sobretudo cânceres, aos peixes
contaminados, à água de irrigação, aos poços de consumo doméstico.
O que vem se anunciando pelos fatos torna o “feliz ano novo”
ridículo. Não quero ser desmancha-prazeres, não quero ser o chato reclamão, não
quero cortar as alegrias que se fabricam no atacado por esta época do ano - não
por acaso. É a estratégia da superficialização do pensamento, da percepção,
criando ilusões de mudança pra que tudo permaneça como está, pra que não se
perceba as raízes, as razões dos enormes problemas sociais, nem as ameaças que
se mostram aproximar como nuvens de tempestades terríveis sobre todos nós. Por
isso passo a noite em casa, sozinho, tomando um vinho, enquanto se festeja a
“chegada de um novo ano, novas esperanças, ano novo, vida nova, tudo
novo”. Não tô pra isso, não dá. Não
consigo nem quero olhar pro outro lado.
Sociedade mafiosa, em todos os campos há máfias. O Estado é
uma entidade criminosa, dominado pelos poderes econômico-financeiros de um
punhado de parasitas sociais podres de ricos que ditam o modelo, o formato, a
estrutura da sociedade, o tipo de educação, os valores, os comportamentos, as
mentalidades. Parasitas que têm na mídia seu porta-voz, seu condutor de
pensamentos e mentalidades, seu deformador da realidade, seu criador de valores
e comportamentos sociais, com as melhores cabeças compradas nas melhores
universidades, consciências vendidas, pra constituírem laboratórios de
pensamento que criarão o que quer que seja pra enganar e conduzir a população,
como gado, usando psicologia do inconsciente e todos os recursos do
conhecimento sobre o ser humano.
Não se trata de ser pessimista ou otimista, se trata de ser
realista ou idiota. Feliz ano novo é o cacete. Não participo disso. Estamos em
tempos nefastos, desumanos, e o que se anuncia é colapso. Não tem “feliz”, não
tem “ano” e não tem “novo”. É tudo mentira. É preciso preparar o pé pra segurar
o tranco. Por gerações.