sexta-feira, 19 de junho de 2020

Uma olhada mais profunda

As mentalidades superficiais, ignorantes de história e teleguiadas pelo massacre midiático-publicitário-ideológico, reagirão negativamente a este artigo, pelo simples fato de ter origem em Cuba, país que pode, diante do mundo, dizer a frase de Fidel, num tribunal, depois da tentativa fracassada de tomar o quartel de Moncada, onde estava sendo julgado: "condenem-me, não importa. A história me absolverá".

A dialética destrutiva de Bolsonaro e o bolsonarismo:
Algumas chaves para decifrá-la

Jair Messias Bolsonaro, o ex-capitão-presidente que desejaria ser a encarnação de Donald Trump nesta parte do mundo, não é - por mais paradoxo que pareça – o principal problema do Brasil, que as políticas de Lula levaram a condição de sexta economia mundial e transformaram em referência da luta contra a pobreza, a partir de programas sociais com alcances sem precedentes no país.
O ex-capitão que desconhece seus deveres republicanos e apoia de forma explícita o retorno da ditadura como regime político é, apenas, uma das expressões grotescas das múltiplas crises que hoje afetam, de maneira simultânea, a esta naçãosul-americana. Todas elas agravadas pelo desempenho, pelos interesses de dominação e o ódio genético do chamado “bolsonarismo”, muito bem identificado pelo ex-ministro Celso Amorim [1].
Sobram análises da imprensa que concentram em Bolsonaro a atenção na hora de explicar a conflitiva evolução da política interna de seu país, porém este é o caminho mais curto para confundir o galho com a floresta. As crises que hoje dilaceram a vida dos brasileiros e que põe em perigo o regime democrático no país, têm raízes mais profundas. Em consequência, a história e os nexos/relações estruturais dos atuais problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais do gigante sul-americano, são maiores e mais complexos que os derivados da gestão recente de um governo ou outro, de um presidente ou outro.
Uma pandemia, a do corona vírus SARS-CoV-2, se transformou em catalizador de todos eles, os levou ao status de crise multidimensional agudizada e pôs a nu as desigualdades inerentes a um sistema político que segue funcionando a favor de uma insultante minoria privilegiada.
Os atuais problemas internos do Brasil guardam relação, em primeiro lugar, com o regime de dominação de classes cujas estruturas de desigualdade, desde a colônia até aqui, nunca foram rompidas e hoje provocam estragos.
Se explicam pelo tipo de inserção a economia mundial que fizeram as elites oligárquicas do país no século XIX, depois da independência de Portugal, a partir de um modelo de desenvolvimento capitalista dependente e anuente às principais potências ocidentais, que agora retoma força com o bolsonarismo.
Revelam, em altíssimo grau, os inevitáveis efeitos do processo de crescente transnacionalização da propriedade e da riqueza no país, sobre a cultura e a prática política dos distintos grupos de poder que dominaram (e dominam) a economia e a vida nacional, sempre amparados no papel tutelar das Forças Armadas. Assim, confirmam as principais constituições do país, incluindo a vigente, aprovada em 1988 com conteúdos mais avançados que suas antecessoras. Isso explica por quê hoje Bolsonaro ataca com tanta veemência seus conteúdos “esquerdistas”.
A compreensão do momento político passa, também, pela necessidade de decifrar o alcance dos nexos/relações orgânicas entre os interesses do grande capital brasileiro e do capital transnacional, ao qual o primeiro está subordinado em diversos graus.
Demanda identificar como estão operando no sistema das distintas expressões institucionais (políticas, econômicas, parlamentares, judiciais, militares e ideológicas) dessa elite brasileira com seus pares/parceiros externos, e inclui também conhecer as zonas de conflito que de fato se estão observando no seio dela, porém dentro de um marco de retrocessos múltiplos para o país.
A partir das premissas expostas [2], é possível antecipar que uma eventual implosão do governo de Bolsonaro, seja via impeachment ou outra, passa hoje pelo comportamento que assumem as Forças Armadas como corporação; depende do modo como se dão as contradições de interesses no seio da direita que facilitou sua ascensão e, em particular, está sujeita ao grau em que se debilite o “bolsonarismo”; e guarda relação com o nível de apoio externo que, de maneira pouco clara e via aliados internos, tem Bolsonaro e a ultradireita que o sustenta.

Para desembaraçar os fios

Jair Bolsonaro se torna presidente graças a uma vasta operação política da direita nacional e internacional, que alcançou seus objetivos retrógrados não porque portassem bandeiras alternativas favoráveis a maioria dos brasileiros, mas graças às aberrações processuais do então juiz Sérgio Moro, que impediram Lula de ser candidato à presidência. 
Foi beneficiário, via Operação Lava-Jato, de uma estratégia geopolítica articulada a partir dos Estado Unidos com objetivos múltiplos. Entre eles, pôs-se a serviço das petroleiras estadunidenses, principalmente, as vastas riquezas do Pré-Sal, anulando, também, o protagonismo internacional do Brasil a partir da política exterior ativa e altiva instalada por Lula.
Alcançou a primeira magistratura porque mentiu-se à todos sem escrúpulos de nenhum tipo em relação ao Partido dos Trabalhadores (PT) e seus líderes, e em grande parte porque a direita soube cavalgar com eficácia sobre certas falhas, omissões e erros do PT e do campo aliado.
Nesse contexto, o “bolsonarismo” surge e se constitui como uma conjunção tão heterogênea como contraditória de grandes interesses econômicos e financeiros, de objetivos revanchistas no campo político e de valores retrógrados no terreno dos costumes. Bolsonaro os representa a todos, uma vez que na política externa busca ser mais trumpista do que o Trump.
É, em rigor, expressão de prejuízos anticomunistas reciclados, próprios dos piores momentos do macarthismo, como ilustram as “teses” extravagantes do “filósofo” Olavo de Carvalho, com residência nos EEUU. Expressa o primitivismo e a intolerância dos evangélicos fundamentalistas que acolheram Bolsonaro como fiel privilegiado, após seu batismo nas águas do Jordão.
Ganha vida em setores sociais principalmente urbanos, intoxicados pelo ódio promovido por uma guerra midiática desenhada milimetricamente para tentar a deslegitimação, desde a raiz, do PT e da esquerda aliada. E revela as nostalgias militaristas e repressivas dos protagonistas mais diretos, civis e militares, da ditadura instalada em abril de 1964, os que acreditam ter encontrado o momento de retomar, desta vez de forma menos sangrenta e até mais hábil, o controle direto do poder executivo.
E, o fundamental, o bolsonarismo é o projeto político, social, ideológico e econômico que no Brasil representa o ultra-neoliberalismo que o capital transnacional, sobretudo o de nacionalidade estadunidense, concebe como o caminho inevitável para recuperar seu poder de dominação ao sul do Rio Bravo. E, neste sentido, antinacional por seu caráter econômico e político, elitista por sua projeção social, e tão autoritário como repressivo em seu modo de proceder.
No terreno dos direitos, Bolsonaro confirma todos os dias o expressado em outros textos: é extremamente obstinado em levar adiante suas ideias e não se deixa controlar com facilidade.
Concluído o primeiro ano de Governo, o núcleo militar que lhe dá sustento teve convincentes evidências de que não alcançou impor seu papel tutelar sobre a questão presidencial, conforme a expectativa inicial. O tema, por suas complexidades, merece atenção particular.
Tal como Trump, Bolsonaro atua como se ainda estivesse em campanha eleitoral. E está. Todos seus passos, os de sua “família” e os do “núcleo ideológico” olavista em cruzada contra o inexistente comunismo, vão em direção a 2020. Este dado é chave: o objetivo é manter o sistema de privilégios obtidos a qualquer preço.
Neste ponto onde começam os problemas para os grupos de poder, que necessitam de certa ordem interna para assegurar a agenda ultraliberal em mãos do ministro da economia. As transnacionais têm pressa, desejam mais do Pré-Sal e as grandes estatais em fase de privatização. Para a Casa Branca, enquanto isso, é essencial o controle geopolítico integral do Brasil.
A direita oligárquica que facilitou o fim precipitado do Governo de Dilma se inquieta com o rumo recessivo da economia; o incremento de outros indicadores sociais, não só porque antecipam insatisfação social, mas também tensões internas que considera conveniente moderar com medidas paliativas, uma vez mais, com interesse de assegurar as cotas da ganancia do capital.
Porém, o plano de Bolsonaro vai por outra direção: abaixo da ideia de que “não queremos negociar nada”, exposta pelos manifestantes pró-ditadura no último 20 de abril, o que quer é armar as suas milícias e a todos seus seguidores, afim de que defendam o presidente que se auto percebe como a expressão de “todo o povo”, no mais pervertido sentido de populismo de direita.
Desta maneira, e com apoio da sua base social cativa (30-33%), o “novo Messias” está colocando o Brasil diante de sérios perigos de confronto civil, ou dizendo de outra maneiro, está jogando com a paz interna do país. Tudo isso com o discutível objetivo de consolidar uma liderança pela via das posições autoritárias. E o incentivo do medo na sociedade. As últimas pesquisas de opinião confirmam que tal opção está a virar-se contra.
O manejo/ a gestão/ o controle voluntarista da crise sanitária generalizada pela COVID-19, facilitou uma crise institucional que está em pleno desenvolvimento. Setores do Congresso, o Supremo Tribunal Federal, os próprios interesses que estão por traz dos meios de comunicação que os ajudaram a vencer as eleições passadas, as figuras mais lúcidas da intelectualidade e a academia estão reagindo com intensidade crescente para evitar o retorno a expressões fascistas de governo, como as que Bolsonaro e o bolsonarismo representam. Isso foi revelado, de corpo inteiro, na reunião do ministério bolsonarista em 22 de abril passado, magistralmente descrita por Frei Betto no “Circo dos Horrores”.
As mentes mais lúcidas do país, muitas delas distantes de todo projeto de esquerda, percebem que o mandatário / representante confundiu os votos que recebeu nas eleições passadas, com um cheque em branco para retroceder o país aos anos 60, quando ao calor do Ato Institucional AI-5 se podia torturar em nome da democracia e da luta contra o comunismo.
Em meio aos casos em ascensão, as forças de esquerda e progressistas, obrigadas pela pandemia ao distanciamento social que o presidente considera desnecessário, estão dando passos alentadores. Cresce a consciência coletiva de que há que se unir a luta pela democracia, dentro da composição mais plural possível, com a reorganização do campo da esquerda. Isso não será fácil na atual correlação de forçasEla não é nada política. Como nada é impossível se há decisão política, objetivos claros e apoio das massas. A dialética destrutiva do binômio Bolsonaro-bolsonarismo poderia, mais cedo ou mais tarde, criar o cenário social e político que possibilite a negação, desta vez com mais qualidade, de seus efeitos perversos para o país que, por seus recursos materiais e humanos, tem todas as condições potenciais para ser um facilitador da integração e cooperação soberana na região, assim com um ator global que propicie o multilateralismo, a partir de políticas de paz e cooperação, como já demonstraram os governos de Lula e Dilma.
Por: Rafael Hidalgo Fernández
Tradução: Amanda Mara Lopes

Notas:

·         [1] Ver: Celso Amorim ao portal TUTAMÉIA: “Os militares se meteram em uma armadilha” – 22 de abril de 2020. Ele sugere a oposição: “deveria se concentrar menos em Bolsonaro e mais no Bolsonarismo e em Guedes (o ministro da economia ultra neoliberal). Na área econômica as maldades continuam sendo encaminhadas” (leia-se as privatizações e a desnacionalização da economia, entre outras “maldades”).

·        [2] Em uma análise integral do assunto não poderia faltar, como princípio variável, “o nível de pressão sobre o Governo e Bolsonaro que exercem as forças de esquerda e democráticas”. A não inclusão desta variável se explica pelo fato de que neste momento ela não tem um rol determinante. Prevalece no país uma correlação conjuntural de forças que diverge da esquerda e dos setores progressistas. Estes se encontram em plena fase de reorganização, para a qual possuem experiência e o ânimo de passar pela contraofensiva necessária. Um processo de consenso, promissório, está em fase de gestação.

8 comentários:

  1. Boa explicação sobre o que está acontecendo em nosso país

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  2. Claro e cristalino. Descreveu exatamente o pesadelo que o Br está vivendo.
    Obrigada, Eduardo!

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  3. A história vai absolver Fidel Castro? Só se for a "estória" contada por você. Fuzilamento de padres, professores, jornalistas, famílias inteiras, não têm absolvição. Até agora estão esperando a tal da ditadura do Bozo enquanto assistem às medidas ditatoriais dos governadores estaduais e de prefeitos, aplaudindo entusiasmados o tal do #fiqueemcasa e não se dão conta de que quem mais sofre com isso são, justamente, os que dependem do trabalho de um dia para alimentar suas famílias. Os catadores de latinha, papelão e etc. estão sem ter o que catar. Você se apresenta como alguém que fala o que vê, e, de fato, o faz. O problema é que você não está focando no real, mas nas realidade produzia por sua imaginação histórica enviesada por conceitos doentios como o de "democracia em Cuba". Só pra ilustrar a fantasia da democracia Cubana: há uns dois anos houve uma passeata LGBT em Cuba. Resultado: prisão dos líderes e dispersão da manifestação que não andou 1km.

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    1. Excelente. Gosto do Eduardo mas as vezes ele força muito em alguns pensamentos.

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  4. Boa tarde vovó Marinho, como está?
    Eu estou bem.
    Estou observando seu trabalho Já faz duas semanas e logo me encaixe no raciocínio pois eu não encontro jovens com reflexões mais íntimas eles sempre dizem que nada irá mudar porque
    Eu não sou ninguém e na família ninguém está no estado...
    Ficaria agradecido pela interação

    Um forte abraço

    Sou de Moçambique (África)

    nersopaulo3@gmail.com

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