segunda-feira, 29 de março de 2021

Distorções midiáticas da realidade - quando se toma consciência de ter sido enganado.

São só exemplos colombianos do papel das comunicações nesta sociedade centrada nos interesses econômico-financeiros, que coloca o ser humano, a vida, o equilíbrio do ambiente, a harmonia social em plano secundário, sem importância suficiente pra impedir a ambição desmedida do punhado de dominantes podres de ricos - a quem a mídia empresarial dominante serve. A distorção da realidade, a criminalização dos movimentos dos prejudicados pelas políticas que roubam dos pobres, em vida, em saúde, em tempo, em qualidade de vida, pra acumular riquezas e poderes naquele punhado, cada vez mais, enquanto a gente estiver com a consciência roubada, enganada, entorpecida pelo massacre midiático, publicitário e ideológico. A missão é hipnotizar, seduzir, superficializar, alienar, criar desejos e objetivos de vida que alimentam o sistema social desumano, perverso, injusto e verdadeiramente anti-social. O artigo é de fevereiro, mas simboliza a "desilusão" necessária à tomada de consciência da realidade. 


Colômbia: Insurgências, ética jornalística e a Síndrome de Estocolmo

Por: DannaUrdaneta

Publicado em 18 de fevereiro de 2021.

Tradução – Amanda Mara Lopes de Oliveira e Eduardo Marinho (todos os parênteses são de E.M.).

Sobre a libertação de dois soldados pelo ELN em Catatumbo... e minha experiência na 10ª Conferência Nacional de Guerrilha das antigas FARC-EP.

O mês de fevereiro começou, na Colômbia, com a discussão sobre a síndrome de Estocolmo no conflito social e armado. A discussão surgiu da prova de vida e posterior liberação pelo ELN (Exército de Libertação Nacional) dos militares profissionais identificados como Jhony Andrés Ospino e Jesús Alberto Segovia, lotados no Batalhão 10 de Energia General José Concha Vial, do departamento de fronteira Norte de Santander.

A mídia (empresarial e dominante, como em muitos países) noticiou o incidente como "libertação de soldados sequestrados", sem levar em conta que na guerra os combatentes das partes em conflito são capturados como prisioneiros de guerra (e não “seqüestrados”) e protegidos pelo Direito Internacional Humanitário. Essas mídias corporativas são chamadas a fazer pedagogia pela paz na Colômbia e são elas que manipulam, negam e distorcem o conflito social e armado no país (nosso) vizinho.

As prisões chamaram a atenção porque os militares são dois adolescentes, quase crianças, evidentemente de origem humilde, levados à guerra pela falta de oportunidades. Suas declarações tiveram um caráter revelador contra a doutrina das Forças Militares: os guerrilheiros são terroristas e massacram seus "reféns". Esses jovens deram seu testemunho quando se depararam com uma realidade muito diferente daquela que sempre lhes ensinaram sobre o inimigo contra quem lutavam.

A prova de vida e a consequente libertação dos prisioneiros de guerra deram origem a declarações das partes no conflito que não foram suficientemente valorizadas (foram desconsideradas ou omitidas) pelos meios de comunicação. As evidências desses discursos no calor do combate são ingredientes para a promoção de diálogos de paz com todos os atores políticos e militares da sociedade colombiana. No entanto, os depoimentos deram o que falar nas redes sociais e levantaram várias questões sobre o tratamento dispensado aos militares dentro dos batalhões, o tipo de comida que recebem e sob quais códigos de valores eles realmente se relacionam.

Os fatos e os testemunhos: dois prisioneiros de guerra capturados pelo ELN.

A captura desses militares ocorreu em 2 de fevereiro, durante a coleta de suprimentos para levá-los à unidade militar do distrito de Guamalito, município de El Carmen, Norte de Santander. No dia 12 de fevereiro, veio à tona um vídeo que comprova a vida dos dois, publicado pelo meio de comunicação Canal CNC Valledupar1, que recolheu as palavras de um comandante não identificado do ELN:

O Comandante da Frente de Guerra do Nordeste, Manuel Pérez Martínez, do Exército de Libertação Nacional da Colômbia, entrega provas de vida aos familiares dos soldados Jhony Andrés Ospino e Jesús Alberto Segovia, vinculados ao Batalhão Rodoviário Energético nº 10, detidos em 2 de fevereiro de 2021 no distrito de Guamalito, município de El Carmen, Norte de Santander. Informamos ao público que nos próximos dias eles serão entregues a uma comissão humanitária com a qual estamos negociando.

Estes acontecimentos levantam várias questões. Quantos gestos humanitários são necessários para que o Estado colombiano decida reabrir as congeladas negociações de paz, em Havana, com a delegação de paz do ELN? Quantos gestos humanitários o Estado retirou de ações de guerra ao perseguir, estigmatizar e massacrar o movimento social, sob a negação do conflito social e armado e protegido por uma suposta “luta contra o narcotráfico”?

Na prova de vida, os prisioneiros de guerra também declararam. O primeiro afirmou:

“Apresento-me, sou o soldado SL 18 MuñozSegovia, faço parte do Batalhão Rodoviário Energético Número 10 General José Concha. Estou aqui com meu parceiro Castillo, fomos capturados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN). No decurso da nossa captura, trataram-nos bem, com uma boa alimentação. Sentimo-nos em perfeitas condições. Queremos enviar uma saudação a toda a Colômbia, estaremos em casa em breve.”

A declaração do soldado Jhony Andrés Ospinono vídeo foi objeto de censura por parte da RCN e serviu de ante-sala para a discussão sobre a síndrome de Estocolmo no desenrolar destas capturas, a qual se refere ao afeto que pode surgir entre capturador e capturado e vice-versa:

“Enviamos uma saudação especial aos nossos colegas, que não se deixem iludir, más histórias, que os ELN são terroristas, que aqueles que são capturados pelo ELN são torturados, massacrados. Como nos disseram nossos comandantes, diga você mesmo: você viveu a experiência para que venha falar mal do ELN, dos guerrilheiros? Então, pelo menos acredite, nós já estamos vivendo a experiência. No início foi aterrorizante, mas quando vivemos com o próprio ELN, o ambiente, já se sente como em casa. E mandamos saudações à nossa família: ao meu pai, à minha mãe, aos meus dois irmãos mais novos, à minha avó, não se preocupem, o ELN já entrou em processo e aparentemente... já nos disseram que partiremos em breve.”

No dia 16 de fevereiro, os militares foram soltos, diante do que o soldado Jhony Andrés Ospino declarou o que sentiu diante de sua liberdade com voz quebrada:

“A verdade é que me deram um bom tratamento desde o começo, pra quê (sic). Já me sentia enturmado com eles. E a verdade é que não tenho nada de ruim para dizer assim, algo de ruim que eles me fizeram, que me trataram mal. A verdade é feliz, mas ao mesmo tempo triste porque eu já estava me afeiçoando a eles.”

Essas histórias, esses rostos confusos dos soldados, essas provocações contra sua integridade sob a estigmatização de que sofreram com a síndrome de Estocolmo são bastante familiares para mim.

Meu depoimento sobre "ética jornalística", "a síndrome de Estocolmo" e a 10ª Conferência Nacional de Guerrilha das antigas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército Popular):

Fui o único repórter venezuelano na 10ª Conferência Nacional de Guerrilha das ex-FARC-EP durante o mês de setembro de 2016. Essa era a cúpula máxima de decisão da guerrilha, lá seria decidido coletivamente se acabariam com a revolta armada. Este acontecimento não teve conclusões conhecidas até ao momento, nem mesmo pelos ex-combatentes, apesar de todos os dias às 7h00 e às 17h00 haver uma conferência de imprensa por parte de seus principais porta-vozes.

Fui apenas uma entre mais de 900 jornalistas de meios alternativos, colombianos e internacionais de todas as partes do mundo. Conheci um vizinho de acampamento que era correspondente na América Latina de um jornal japonês; residia no Brasil e havia viajado para a Colômbia exclusivamente para cobrir este evento que marcaria um antes e um depois na história do continente latino-americano.

            Este correspondente conversava angustiado com outro jornalista e antropólogo enviado por uma universidade colombiana. O japonês perguntava ao colombiano como iria fazer sua reportagem, já que não encontrara a maneira, não poderia escrever, com certeza. Havia chegado com muito medo à Colombia porque iria diretamente para a região onde se acirrou a guerra e, para o meio de um acampamento de “terroristas”. O colombiano escutou o japonês e lhe disse, rindo, que o entendia perfeitamente. O japonês insistia que havia chegado com muito medo ao lugar, sem saber se sairia vivo dali, porque nos meios de comunicação só se fala que as FARC-EP são criminosas, terroristas, sequestradoras e tudo de pior no mundo. No entanto, ao chegar ao lugar e conhecer os guerrilheiros e guerrilheiras, ao vê-los trabalhar, só via que eram camponeses pobres, que não tiveram opção de vida além de serem arrastados para a guerra. Ele não via neles os terroristas que pintavam nos meios de comunicação.

O dilema do japonês era que a mídia para a qual trabalhava aguardava algumas notas que dessem conta dos horrores e crimes cometidos pelas FARC-EP, mas, ao ouvir suas histórias e suas convicções políticas, mudou completamente o quadro que ele conhecia. Se ele dissesse o que realmente estava vendo, eles o despediriam e o rotulariam como um propagandista do terrorismo.

Como este, foram muitos os casos que conheci, histórias que permaneceram como parte dos segredos que as planícies de Yari escondem até hoje.

Os dois casos que mais me tocaram aconteceram no final da 10ª Conferência, onde um membro do secretariado realizou uma reunião com cerca de 50 jornalistas que permaneceram na área para fazer algumas reflexões e reconhecimento dos trabalhadores dos meios de comunicação face aos seus exploradores. Me aperta o peito e a garganta ao me lembrar dele.

Um rapaz como eu fez a sua intervenção de pé e disse que ele e os seus companheiros iam para uma comunicação social comunitária, que não tinha recursos ou bilhetes para chegar ao local, mas não podia perder a oportunidade de se encontrar com os guerrilheiros neste evento histórico. Foram de carona em carona e de cauda em cauda – como dizemos na Venezuela – de Antioquia, demoraram 5 dias para chegar às planícies de Yarí, no departamento de Caquetá. Atravessaram todo o país para chegar. Sobre o sacrifício e a incerteza da viagem no meio da pobreza e da estigmatização, disse orgulhosamente, com a voz embargada: “viemos conhecê-los, esta é a nossa contribuição para a paz e reconciliação na Colômbia” que, evidentemente, consistia em mostrar a outra voz do conflito.

Após esta intervenção, outra jornalista de uma mídia nacional colombiana falou, uma âncora até agora reconhecida. Disse chorando que lamentava não ter levado os filhos com ela à 10ª Conferência, que era uma grande oportunidade que nunca se repetiria e que lamentava que seus filhos não pudessem conhecer a guerrilha, para viver na própria pele uma outra forma de ser, de agir, outros valores, como a solidariedade e o desapego absoluto, o verdadeiro trabalho em equipe e o cuidado coletivo. Nunca esqueço suas palavras: "não sabia que isso ia ser assim, teria trazido meus filhos para conhecê-los”. Em seu discurso ela disse que, depois de muitos anos, percebeu o quão injusta tem sido a estigmatização da guerra pela mídia.

Como esses colegas, tantas outras experiências da classe média universitária colombiana, gente apavorada com a estigmatização que sofreriam ao voltar para suas famílias e amigos nas cidades. Já tinham parado de falar com mais de um só porque tinham ido fazer a cobertura do evento e não podiam contar tudo o que tinham vivido, ao invés de dizer que estavam bem, que foram bem tratados. Sem poder dizer o que realmente pensavam: “não são terroristas, são camponeses”.

A libertação dos adolescentes serviu para abrir a discussão contra os meios de comunicação, por sua alta responsabilidade em se posicionar como agentes do conflito social e armado, que desumaniza o "inimigo interno", no caso, as insurgências. Essa demonização de cada condição humana prepara as condições subjetivas para as ações do terrorismo de Estado. Portanto, não importa se eles massacram civis ou bombardeiam 18 crianças em Caquetá, porque são “terroristas”.

Esses jornalistas colombianos e internacionais também sofreram de uma versão da síndrome de Estocolmo durante a X Conferência Nacional de Guerrilha? São as mesmas faces de confusão e alegria mesclada que se vêem nesses soldados adolescentes que foram libertados pelo ELN.

Paz para a Colômbia, nada para a guerra!

 

 

Referências:

1 Canal CNC Valledupar. (12 de fevereiro de 2021). ELN ENTREGA PROVA DE SOBREVIVÊNCIA DE UM SOLDADO DE AGUACHIQUENSE SEQUESTRADO. Colômbia: YouTube. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=Ud3J7iCHjKc

2 Roloco News. (16 de fevereiro de 2021). "Eu já estava me apegando a eles": Soldado libertado. Colômbia: YouTube. Obtido em https://www.youtube.com/watch?v=nH7YOBLkvX8

3 Reservo a identidade dos colegas com os quais compartilhei a experiência devido ao aumento da violência e do terrorismo de Estado na Colômbia que diariamente desloca acadêmicos, sindicalistas, dirigentes e lideranças sociais, principalmente para a Venezuela e Espanha. A esse respeito, recomendo a leitura: https://www.telesurtv.net/opinion/Cristina-Bustillo-y-el-terrorismo-de-Estado-en-Colombia-contra-el-sindicalismo-20201217-0014.htm

Equipe editorial da 4 W Radio. (12 de novembro de 2019). O número de menores que morreram após o atentado de Caquetá seria de 18, segundo testemunhas. Colômbia: W Radio. Obtido em https://www.wradio.com.co/noticias/actualidad/cifra-de-menores-que-murieron-tras-bombardeo-en-caqueta-ascenderia-a-18-segun-testigos/20191112/nota/ 3977643.aspx

2 comentários:

  1. Boa e abençoada noite. Transformar camponeses em terroristas é a melhor forma de sufocar e aniquilar qualquer possibilidade de ascensão da população mais pobre a condição de iguais e de seres com direitos e dignidade humana. Pode ser aplicado na nossa realidade brasileira, qualquer um que erga a voz e mobilize mentes para a igualdade entre as pessoas e a força do povo será um terrorista.

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  2. Hoje em dia protesto é terrorismo...

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