São só exemplos colombianos do papel das comunicações nesta sociedade centrada nos interesses econômico-financeiros, que coloca o ser humano, a vida, o equilíbrio do ambiente, a harmonia social em plano secundário, sem importância suficiente pra impedir a ambição desmedida do punhado de dominantes podres de ricos - a quem a mídia empresarial dominante serve. A distorção da realidade, a criminalização dos movimentos dos prejudicados pelas políticas que roubam dos pobres, em vida, em saúde, em tempo, em qualidade de vida, pra acumular riquezas e poderes naquele punhado, cada vez mais, enquanto a gente estiver com a consciência roubada, enganada, entorpecida pelo massacre midiático, publicitário e ideológico. A missão é hipnotizar, seduzir, superficializar, alienar, criar desejos e objetivos de vida que alimentam o sistema social desumano, perverso, injusto e verdadeiramente anti-social. O artigo é de fevereiro, mas simboliza a "desilusão" necessária à tomada de consciência da realidade.
Colômbia: Insurgências, ética jornalística e a Síndrome de Estocolmo
Por: DannaUrdaneta
Publicado em 18 de fevereiro de 2021.
Tradução – Amanda Mara Lopes de Oliveira e Eduardo Marinho
(todos os parênteses são de E.M.).
Sobre a libertação de dois soldados
pelo ELN em Catatumbo... e minha experiência na 10ª Conferência Nacional de
Guerrilha das antigas FARC-EP.
O mês de fevereiro começou, na
Colômbia, com a discussão sobre a síndrome de Estocolmo no conflito social e
armado. A discussão surgiu da prova de vida e posterior liberação pelo ELN
(Exército de Libertação Nacional) dos militares profissionais identificados
como Jhony Andrés Ospino e Jesús Alberto Segovia, lotados no Batalhão 10 de
Energia General José Concha Vial, do departamento de fronteira Norte de
Santander.
A mídia (empresarial e dominante,
como em muitos países) noticiou o incidente como "libertação de soldados
sequestrados", sem levar em conta que na guerra os combatentes das partes
em conflito são capturados como prisioneiros de guerra (e não “seqüestrados”) e
protegidos pelo Direito Internacional Humanitário. Essas mídias
corporativas são chamadas a fazer pedagogia pela paz na Colômbia e são elas que
manipulam, negam e distorcem o conflito social e armado no país (nosso) vizinho.
As prisões chamaram a atenção porque
os militares são dois adolescentes, quase crianças, evidentemente de origem
humilde, levados à guerra pela falta de oportunidades. Suas declarações
tiveram um caráter revelador contra a doutrina das Forças Militares: os
guerrilheiros são terroristas e massacram seus "reféns". Esses
jovens deram seu testemunho quando se depararam com uma realidade muito
diferente daquela que sempre lhes ensinaram sobre o inimigo contra quem lutavam.
A prova de vida e a consequente
libertação dos prisioneiros de guerra deram origem a declarações das partes no
conflito que não foram suficientemente valorizadas (foram desconsideradas ou
omitidas) pelos meios de comunicação. As evidências desses discursos no
calor do combate são ingredientes para a promoção de diálogos de paz com todos
os atores políticos e militares da sociedade colombiana. No entanto, os
depoimentos deram o que falar nas redes sociais e levantaram várias questões
sobre o tratamento dispensado aos militares dentro dos batalhões, o tipo de
comida que recebem e sob quais códigos de valores eles realmente se relacionam.
Os fatos e os testemunhos: dois
prisioneiros de guerra capturados pelo ELN.
A captura desses militares ocorreu em
2 de fevereiro, durante a coleta de suprimentos para levá-los à unidade militar
do distrito de Guamalito, município de El Carmen, Norte de Santander. No
dia 12 de fevereiro, veio à tona um vídeo que comprova a vida dos dois,
publicado pelo meio de comunicação Canal CNC Valledupar1, que recolheu as
palavras de um comandante não identificado do ELN:
O Comandante da Frente de Guerra do Nordeste, Manuel Pérez Martínez, do
Exército de Libertação Nacional da Colômbia, entrega provas de vida aos
familiares dos soldados Jhony Andrés Ospino e Jesús Alberto Segovia, vinculados
ao Batalhão Rodoviário Energético nº 10, detidos em 2 de fevereiro de 2021 no
distrito de Guamalito, município de El Carmen, Norte de
Santander. Informamos ao público que nos próximos dias eles serão
entregues a uma comissão humanitária com a qual estamos negociando.
Estes acontecimentos levantam várias
questões. Quantos gestos humanitários são necessários para que o Estado
colombiano decida reabrir as congeladas negociações de paz, em Havana, com a
delegação de paz do ELN? Quantos gestos humanitários o Estado retirou de
ações de guerra ao perseguir, estigmatizar e massacrar o movimento social, sob
a negação do conflito social e armado e protegido por uma suposta “luta contra
o narcotráfico”?
Na prova de vida, os prisioneiros de
guerra também declararam. O primeiro afirmou:
“Apresento-me, sou o soldado SL 18 MuñozSegovia, faço parte do Batalhão Rodoviário
Energético Número 10 General José Concha. Estou aqui com meu parceiro
Castillo, fomos capturados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN). No
decurso da nossa captura, trataram-nos bem, com uma boa
alimentação. Sentimo-nos em perfeitas condições. Queremos enviar uma
saudação a toda a Colômbia, estaremos em casa em breve.”
A declaração do soldado Jhony Andrés
Ospinono vídeo foi objeto de censura por parte da RCN e serviu de ante-sala para
a discussão sobre a síndrome de Estocolmo no desenrolar destas capturas, a qual
se refere ao afeto que pode surgir entre capturador e capturado e vice-versa:
“Enviamos uma saudação especial aos nossos colegas, que não se deixem iludir,
más histórias, que os ELN são terroristas, que aqueles que são capturados pelo
ELN são torturados, massacrados. Como nos disseram nossos comandantes,
diga você mesmo: você viveu a experiência para que venha falar mal do ELN, dos
guerrilheiros? Então, pelo menos acredite, nós já estamos vivendo a
experiência. No início foi aterrorizante, mas quando vivemos com o próprio
ELN, o ambiente, já se sente como em casa. E mandamos saudações à nossa
família: ao meu pai, à minha mãe, aos meus dois irmãos mais novos, à minha avó,
não se preocupem, o ELN já entrou em processo e aparentemente... já nos
disseram que partiremos em breve.”
No dia 16 de fevereiro, os militares foram soltos, diante do que o
soldado Jhony Andrés Ospino declarou o que sentiu diante de sua liberdade com
voz quebrada:
“A verdade é que me deram um bom tratamento desde o começo, pra quê
(sic). Já me sentia enturmado com eles. E a verdade é que não tenho
nada de ruim para dizer assim, algo de ruim que eles me fizeram, que me
trataram mal. A verdade é feliz, mas ao mesmo tempo triste porque eu já
estava me afeiçoando a eles.”
Essas histórias, esses rostos
confusos dos soldados, essas provocações contra sua integridade sob a
estigmatização de que sofreram com a síndrome de Estocolmo são bastante
familiares para mim.
Meu depoimento sobre "ética
jornalística", "a síndrome de Estocolmo" e a 10ª Conferência
Nacional de Guerrilha das antigas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército Popular):
Fui o único repórter venezuelano na 10ª
Conferência Nacional de Guerrilha das ex-FARC-EP durante o mês de setembro de
2016. Essa era a cúpula máxima de decisão da guerrilha, lá seria decidido
coletivamente se acabariam com a revolta armada. Este acontecimento não
teve conclusões conhecidas até ao momento, nem mesmo pelos ex-combatentes,
apesar de todos os dias às 7h00 e às 17h00 haver uma conferência de imprensa por
parte de seus principais porta-vozes.
Fui apenas uma entre mais de 900 jornalistas de meios alternativos,
colombianos e internacionais de todas as partes do mundo. Conheci um vizinho de
acampamento que era correspondente na América Latina de um jornal japonês;
residia no Brasil e havia viajado para a Colômbia exclusivamente para cobrir
este evento que marcaria um antes e um depois na história do continente
latino-americano.
Este correspondente
conversava angustiado com outro jornalista e antropólogo enviado por uma
universidade colombiana. O japonês perguntava ao colombiano como iria fazer sua
reportagem, já que não encontrara a maneira, não poderia escrever, com certeza.
Havia chegado com muito medo à Colombia porque iria diretamente para a região
onde se acirrou a guerra e, para o meio de um acampamento de “terroristas”. O
colombiano escutou o japonês e lhe disse, rindo, que o entendia perfeitamente.
O japonês insistia que havia chegado com muito medo ao lugar, sem saber se
sairia vivo dali, porque nos meios de comunicação só se fala que as FARC-EP são
criminosas, terroristas, sequestradoras e tudo de pior no mundo. No entanto, ao
chegar ao lugar e conhecer os guerrilheiros e guerrilheiras, ao vê-los
trabalhar, só via que eram camponeses pobres, que não tiveram opção de vida
além de serem arrastados para a guerra. Ele não via neles os terroristas que
pintavam nos meios de comunicação.
O dilema do japonês era que a mídia
para a qual trabalhava aguardava algumas notas que dessem conta dos horrores e
crimes cometidos pelas FARC-EP, mas, ao ouvir suas histórias e suas convicções
políticas, mudou completamente o quadro que ele conhecia. Se ele dissesse
o que realmente estava vendo, eles o despediriam e o rotulariam como um
propagandista do terrorismo.
Como este, foram muitos os casos que conheci, histórias que permaneceram
como parte dos segredos que as planícies de Yari escondem até hoje.
Os dois casos que mais me tocaram aconteceram no final da 10ª
Conferência, onde um membro do secretariado realizou uma reunião com cerca de
50 jornalistas que permaneceram na área para fazer algumas reflexões e
reconhecimento dos trabalhadores dos meios de comunicação face aos seus
exploradores. Me aperta o peito e a garganta ao me lembrar dele.
Um rapaz como eu fez a sua intervenção de pé e disse que ele e os seus
companheiros iam para uma comunicação social comunitária, que não tinha
recursos ou bilhetes para chegar ao local, mas não podia perder a oportunidade
de se encontrar com os guerrilheiros neste evento histórico. Foram de carona em
carona e de cauda em cauda – como dizemos na Venezuela – de Antioquia,
demoraram 5 dias para chegar às planícies de Yarí, no departamento de Caquetá.
Atravessaram todo o país para chegar. Sobre o sacrifício e a incerteza da
viagem no meio da pobreza e da estigmatização, disse orgulhosamente, com a voz embargada:
“viemos conhecê-los, esta é a nossa contribuição para a paz e reconciliação na Colômbia”
que, evidentemente, consistia em mostrar a outra voz do conflito.
Após esta intervenção, outra jornalista de uma mídia nacional colombiana
falou, uma âncora até agora reconhecida. Disse chorando que lamentava não
ter levado os filhos com ela à 10ª Conferência, que era uma grande oportunidade
que nunca se repetiria e que lamentava que seus filhos não pudessem conhecer a
guerrilha, para viver na própria pele uma outra forma de ser, de agir, outros
valores, como a solidariedade e o desapego absoluto, o verdadeiro trabalho em
equipe e o cuidado coletivo. Nunca esqueço suas palavras: "não sabia
que isso ia ser assim, teria trazido meus filhos para conhecê-los”. Em seu
discurso ela disse que, depois de muitos anos, percebeu o quão injusta tem sido
a estigmatização da guerra pela mídia.
Como esses colegas, tantas outras
experiências da classe média universitária colombiana, gente apavorada com a
estigmatização que sofreriam ao voltar para suas famílias e amigos nas
cidades. Já tinham parado de falar com mais de um só porque tinham ido fazer
a cobertura do evento e não podiam contar tudo o que tinham vivido, ao invés de
dizer que estavam bem, que foram bem tratados. Sem poder dizer o que
realmente pensavam: “não são terroristas, são camponeses”.
A libertação dos adolescentes serviu
para abrir a discussão contra os meios de comunicação, por sua alta
responsabilidade em se posicionar como agentes do conflito social e armado, que
desumaniza o "inimigo interno", no caso, as insurgências. Essa
demonização de cada condição humana prepara as condições subjetivas para as
ações do terrorismo de Estado. Portanto, não importa se eles massacram
civis ou bombardeiam 18 crianças em Caquetá, porque são “terroristas”.
Esses jornalistas colombianos e
internacionais também sofreram de uma versão da síndrome de Estocolmo durante a
X Conferência Nacional de Guerrilha? São as mesmas faces de confusão e
alegria mesclada que se vêem nesses soldados adolescentes que foram libertados
pelo ELN.
Paz para a Colômbia, nada para a
guerra!
Referências:
1 Canal CNC Valledupar. (12 de fevereiro de 2021). ELN ENTREGA
PROVA DE SOBREVIVÊNCIA DE UM SOLDADO DE AGUACHIQUENSE
SEQUESTRADO. Colômbia: YouTube. Recuperado de:
https://www.youtube.com/watch?v=Ud3J7iCHjKc
2 Roloco News. (16 de fevereiro de 2021). "Eu já estava
me apegando a eles": Soldado libertado. Colômbia: YouTube. Obtido em
https://www.youtube.com/watch?v=nH7YOBLkvX8
3 Reservo a identidade dos colegas com os quais compartilhei a
experiência devido ao aumento da violência e do terrorismo de Estado na
Colômbia que diariamente desloca acadêmicos, sindicalistas, dirigentes e
lideranças sociais, principalmente para a Venezuela e Espanha. A esse
respeito, recomendo a leitura:
https://www.telesurtv.net/opinion/Cristina-Bustillo-y-el-terrorismo-de-Estado-en-Colombia-contra-el-sindicalismo-20201217-0014.htm
Equipe editorial da 4 W Radio. (12 de novembro de 2019). O
número de menores que morreram após o atentado de Caquetá seria de 18, segundo
testemunhas. Colômbia: W Radio. Obtido em
https://www.wradio.com.co/noticias/actualidad/cifra-de-menores-que-murieron-tras-bombardeo-en-caqueta-ascenderia-a-18-segun-testigos/20191112/nota/
3977643.aspx